quinta-feira, 21 de junho de 2012

UMA REFLEXÃO IMPORTANTE(ii)


Para que não se percam os frutos da civilização (ii)
por Manuel Raposo [*]

IV

Portanto – bloqueio da acumulação, fase senil.

Sabemos que o capital ao reproduzir-se reproduz também as relações sociais que lhe são próprias. Ora, a crescente dificuldade de reprodução do capital traduz-se numa dificuldade crescente de reprodução das relações sociais – daí a decomposição das instituições (nomeadamente do Estado), o esvaziamento da democracia, o abandono do estandarte do progresso, o apagamento das grandes crenças burguesas (nação, pátria, família, deus).

A civilização burguesa terá então entrado numa etapa final. É isso que transparece na própria maneira como a burguesia fala do seu regime. A ideologia do progresso contínuo, da prosperidade, que foi desde sempre a marca do positivismo burguês, da superioridade sobre as formações sociais atrasadas, transfigurou-se num discurso de justificação do retrocesso: não mais emprego garantido, não mais melhoria de vida de pais para filhos, não mais consumo livre, não mais lazer, não mais saúde e instrução para todos, não mais nada disso.

Visto no seu sentido de fundo este é um discurso que denuncia a incapacidade das classes dominantes para convencerem as classes dominadas da superioridade do seu sistema; denuncia a incapacidade de uma civilização para mobilizar o todo social em torno dos seus objectivos de classe.

Uma sociedade que já só assegura (não apenas nos factos mas também pela voz dos seus mentores) um amanhã pior que o dia de hoje – e que afirma só poder subsistir nessa condição! – é uma sociedade que caminha para o fim.

Podia dizer-se – uma sociedade já sem apresentação...

Em termos históricos não há portanto remendos possíveis – e isso está de resto patente na ineficácia das tentativas, tanto do capitalismo puro e duro como do reformismo, de colmatar as brechas do edifício.

V

Dito isto, então a verdadeira causa da nossa época é pôr termo ao capitalismo.

Certo. Mas a revolução social não está de modo nenhum ao virar da esquina. Como disse antes, o movimento comunista está bloqueado no meio da crise do sistema capitalista.

É difícil encontrar uma explicação completa para este facto, mas não erro se disser que concorrem para isso:
·  as enormes mutações sociais no proletariado mundial pelo menos desde 1970-80;
·  a dissolução ideológica que o marxismo revolucionário sofreu no século XX, acompanhando o longo estertor da revolução soviética;
·  e, no presente, a ausência de um claro ataque político às bases do sistema capitalista (porque, como disse Marx, é a própria base das contradições que deve ser derrubada).
Este estado de coisas, no entanto, não está congelado. Há sinais de mudança, embora a prazo que não se pode medir.

Centro-me nas mudanças de natureza social dos últimos 30-40.

Até 1970 a classe operária produtora de mais valia cresceu nos principais países capitalistas
[9] .

Nas décadas seguintes foi decaindo nesses países. Mas à escala global o seu número aumentou em termos absolutos devido aos crescimentos enormes verificados no Terceiro Mundo. Deu-se portanto uma proletarização maciça nos países periféricos e um aumento em valor absoluto do proletariado mundial. Isto quanto ao número.

Também a partir de meados dos anos de 1970, o desemprego cresceu muito nos países mais desenvolvidos, colocando fora da produção milhões de trabalhadores
[10] .

Ao mesmo tempo, sobretudo nos anos mais recentes, uma grande parte, e uma parte crescente, dos desempregados passaram a ser desempregados permanentes – ou como precários ou mesmo como excluídos do sistema do salariato.

Em qualquer caso, é de notar que esta desagregação do proletariado se faz por rebaixamento de uma parte dos trabalhadores à condição de um sub-proletariado ou mesmo de um lumpen-proletariado – não por aburguesamento ou ascensão social.

Esta evolução traduz, de forma gritante, o processo de substituição do trabalho vivo por trabalho morto que acompanha a acumulação capitalista
[11] .

E o que fica demonstrado não é a impossibilidade da revolução social, mas a inutilidade histórica do capitalismo da nossa época que se tornou incapaz de transformar o progresso material em benefício social.

Apesar, portanto, da complexidade desta evolução social e dos solavancos por que passa, uma coisa é certa: o processo vai na direcção de ampliar enormemente as classes proletárias, na acepção de classes despojadas de qualquer meio de produção. Mais ainda, como grande parte dessa massa não tem ocupação no quadro da produção capitalista – e é mesmo, em boa parte, impedida pelo sistema de ter uma ocupação útil – os factores de explosão social crescem também em proporção. Os motins de Londres ou Paris, ou as revoltas árabes são disso exemplos.

Em resumo: não será por falta de actores que a revolução social deixará de se fazer.

VI

Mas há ainda um outro argumento, que tem a ver com uma camada social particular: as chamadas classes médias.

As sociedades capitalistas mais desenvolvidas caracterizam-se, pelo menos desde os começos do século XX, por gerarem uma vasta camada social, na maioria assalariada, situada, pela sua condição de vida, entre o operariado e a burguesia.

A sua função, em termos gerais, é enquadrar a produção, intervir na circulação do capital e proporcionar a realização da mais valia.

Essa camada social é um sinal distintivo das sociedades imperialistas, como Lenine, por exemplo, bem vincou.

Olhando para os últimos 50 ou mesmo 100 anos, um dos seus principais papéis tem sido o de assegurar a estabilidade social e política dos regimes capitalistas desenvolvidos. Aliadas naturais da burguesia, essas camadas garantiram o balancé que tem sido a sucessão de republicanos e democratas nos EUA, de trabalhistas e conservadores no Reino Unido, de social-democratas e democratas-cristãos na Alemanha, dos equivalentes no Japão, em França e na Itália – e até de PS e PSD em Portugal nos últimos 38 anos.

Todo o mundo mais desenvolvido tem tido nessas camadas o fiel de balança no que respeita a manter o poder do capital sem agitações, servindo de barreira a qualquer movimento com cariz de classe da parte do proletariado.

Mas como os tempos mudam, interessa notar o seguinte:

Mais ou menos até final do século XX o crescimento do sector terciário absorveu em parte os despedimentos da indústria. Esse facto, além de diminuir o impacto do desemprego, manteve entre os trabalhadores a crença de que o capitalismo sempre assegurava as hipóteses de ascensão social
[12] .

As classes médias, porém, entraram em retrocesso. Por um lado, porque também nos serviços a rentabilidade do trabalho aumentou e permite dispensar mão-de-obra; por outro lado, porque o pântano da produção capitalista obriga agora a burguesia a penalizar mesmo os seus parentes próximos.

Depois de ter levado a massa proletária produtiva à pobreza ou à beira disso e de a castigar por todas as formas – a maré da crise não parou de subir e molha já os pés das classes intermédias. O significado deste facto parece-me importante:
·  o ascensor social empanou;
·  a burguesia capitalista aliena o apoio social e político do seu principal aliado;
·  o confronto de classes clarifica-se, aproximando as sociedades capitalistas do modelo (digamos assim) canónico de duas classes antagónicas: burguesia, proletariado.
A choradeira oficial sobre o empobrecimento da classe média é apenas uma forma de comiseração do poder, um gesto para tentar ainda segurar esse parceiro histórico. Mas a tendência de proletarização dessas classes parece irreversível, dando mais um sinal do fim de uma época.

Do ponto de vista do comunismo só há que saudar essa clarificação.

(Faço um parêntese para dizer que esta evolução não se traduz, nem de imediato nem necessariamente, num posicionamento anticapitalista dessas camadas – pelo contrário, o primeiro reflexo de boa parte delas será o de defenderem os privilégios anteriores, de aderirem a ideologias nacionalistas e mesmo fascistas, de se demarcarem da massa proletária, reagindo como uma espécie de aristocracia falida. Mas isso não anula o facto de, a prazo, a burguesia capitalista ir ficando mais só no terreiro – dependendo o comportamento político das classes médias do papel que a massa proletária propriamente dita desempenhar no confronto de classes.)



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