terça-feira, 4 de março de 2014

POR UMA REFORMA AGRÁRIA POPULAR...




Terra e alimentos sãos: uma luta para todos


03.Mar.14


No seu VI Congresso, realizado em Brasília de 10 a 14 de Fevereiro com 16 mil delegados de todo o país e centenas de aliados internacionais, o MST concentrou-se em denunciar os impactos do “milagre brasileiro” e em afirmar que a produção de alimentos não é assunto apenas dos camponeses mas de todos, e que exige uma “reforma agrária popular”.


O MST, Movimento dos trabalhadores rurais Sem Terra de Brasil é, por muitas razões, um dos movimentos sociais mais notáveis da América Latina.
Mudou a realidade de milhões de despossuídos no seu país, para além de ter uma forte presença nas disputas do discurso político-social no Brasil e de ter inspirado muitos outros movimentos no planeta.
Nos seus 30 anos de luta e construção o MST conseguiu arrancar ao latifúndio 6 milhões de hectares de terra, onde estabeleceu assentamentos para 350 mil famílias, um milhão e meio de pessoas. Tem outras 100 mil famílias ocupando terras ou acampados na berma de estradas, reclamando terras. As lutas, ocupações e acampamentos não são nem têm sido fáceis, são anos de viver sob tendas de lona negra, muitas vezes com repressão violenta, pela qual sofreram dezenas de assassínios de membros seus às mãos de latifundiários e dos seus pistoleiros, da polícia militar e até de milícias contratadas por transnacionais, como foi o caso de Syngenta, responsável pelo assassínio do companheiro Keno no Paraná. A contracorrente, e como parte essencial da sua luta, em cada um desses acampamentos de ocupação, ainda que provisórios, o MST instalou escola, creche e formação de adultos, para além de assembleias permanentes. Em cada assentamento legalizado construíram escolas primárias e há no movimento 50 centros de ensino médio e técnico superior, além de ter conseguido um programa especial para educação universitária dos jovens dos assentamentos, já frequentado por vários milhares. Isto entre muitos outros aspectos e realizações deste movimento multifacetado, que é também membro fundador da Via Campesina internacional.
No seu VI Congresso, realizado em Brasília de 10 a 14 de Fevereiro com 16 mil delegados de todo o país e centenas de aliados internacionais, o MST concentrou-se em denunciar os impactos do “milagre brasileiro” e em afirmar que a produção de alimentos não é assunto apenas dos camponeses mas de todos, e que exige uma “reforma agrária popular”. Movimento sempre em movimento, anunciaram também uma campanha pela reforma profunda do sistema político, para acabar com a compra de políticos por parte de grandes interesses privados e transnacionais.
Com múltiplos testemunhos de especialistas e de militantes, o congresso do MST mostrou que o vertiginoso avanço das transnacionais dos agronegócios, particularmente favorecido pelos governos neo-desenvolvimentistas de Lula e Rousseff, significou a expulsão de camponeses e indígenas das suas terras e a quase paralisação da entrega de terras para reforma agraria, para além de provocar uma enorme deflorestação paralelamente com a instalação de mega monocultivos de soja e milho transgénico, cana-de-açúcar e eucalipto, com aumento brutal do uso de agro-tóxicos, devastação de solos, água, biodiversidade e áreas naturais. Todas as produções controladas por transnacionais para a exportação, enquanto crescia a importação de comida para a população. Os maiores lucros foram para Monsanto, Cargill, Nestlé e outras transnacionais do sistema agro-alimentar. Que metade da população brasileira receba subsídios do governo para se alimentar pode ser bom para que não morra de fome, mas não a torna sustentável e, definitivamente, não constitui soberania alimentar.
Este modelo de agro-negócios, juntamente com a crise e com a permanente procura de novos mercados pelo capital financeiro - como os mercados do carbono, serviços ambientais e programas como REDD em bosques e agricultura - significou um aumento da disputa de territórios e da água contra camponeses, indígenas, comunidades quilombolas e locais.
Como explica o MST, a sua principal reivindicação histórica, a reforma agrária, não é uma reivindicação revolucionaria. É exigir que se cumpra o que define a constituição brasileira, que é expropriar o latifúndio improdutivo e entregar terra aos camponeses sem terra. Mas, denunciam, no Brasil nunca houve reforma agrária: cada pedaço de terra, cada assentamento, cada expropriação foi arrancada ao governo e aos latifundiários com luta, ocupações e protestos.
Agora que cada palmo de terra é objecto da cobiça de empresários, seja para monocultivos, para megaprojectos de mineração, represas, vias e outras infra-estruturas necessárias ao modelo, e que o que não se arrasa ou devasta pode ser potencialmente vendido ao mercado especulativo do carbono e dos serviços ambientais, para o governo não resta “latifúndio improdutivo” para os camponeses sem terra.
Perante estas falácias, o MST lança a proposta e o desafio de lutar e construir uma Reforma Agrária Popular. Já não apenas contra o latifúndio mas também contra as transnacionais e o capital financeiro. Porque a produção de alimentos, sãos, suficientes e soberanos, e a reforma agrária que isso implica, é assunto de todo o povo e não apenas dos camponeses. Às suas reivindicações históricas pela terra e à luta contra agro-tóxicos e transgénicos juntam agora com destaque a construção de produção agro-ecológica, de agro-indústrias cooperativas locais, a defesa da biodiversidade e da diversidade cultural, o cuidado e controlo das sementes. Convidam e desafiam todos os movimentos sociais, do campo, de trabalhadores, de ambientalistas, de organizações políticas críticas, a juntar-se a esta nova etapa de resistência e construção.
Face ao amplamente difundido mito de que necessitamos das transnacionais e dos seus transgénicos para alimentar o mundo, a trajectória do MST é um forte testemunho do contrário, que coloca um tema fundamental e iniludível: em todo o lado, as lutas camponesas e a sua obstinada reivindicação do direito a ser camponeses são essenciais para a sobrevivência de todos e para a sobrevivência do planeta.
La Jornada, 23/2/2014
* Investigadora do Grupo ETC

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