(Veiculado
pelo Correio da Cidadania a partir de 27/03/15)
Paulo
Metri – conselheiro do Clube de Engenharia e colunista do Correio da Cidadania
Busco
trazer uma réstia de luz sobre o desenrolar sombrio dos acontecimentos recentes
do Brasil. Chegou às minhas mãos, por acaso, a versão mais atual do manual para
formação de agentes do órgão de inteligência do país “que vocês sabem qual é”.
Este manual, muito bem-vindo, não deveria, em hipótese alguma, ter saído do escritório
central da instituição.
Vou
direto ao capítulo sobre o Brasil. No preâmbulo, dizem que, apesar de o país
ter vivido durante 21 anos em um regime de opressão, não existem grupos políticos
com práticas violentas atuando no país. Lembram que há banditismo, mas sem
conotação política. Continuam: “Grosso modo, a burguesia brasileira se coloca à
inteira disposição para ajudar o ‘nosso’ projeto. A maioria está longe de ter
algum rompante nacionalista. Não pretende se aliar à classe operária para
construir uma sociedade com firme propósito de desenvolvimento. Só querem
receber alguma compensação financeira de ‘nossa’ parte. A classe, sobre a qual
devemos concentrar ‘nossas’ ações, é a classe média. Ela é totalmente
desinformada, alienada, graças à competente influência da mídia convencional,
com grande participação da televisão”.
A
melhor conscientização que este documento acarreta é na seção sobre o papel da
mídia no Brasil. Exatamente sobre a televisão, diz que: “há grupos no Brasil
que são ‘nossos’. Recomendamos que ela se dedique bastante ao entretenimento,
com forte participação de ‘nossos’ filmes e seriados para que ‘nossos’ valores
e ilusões se tornem universais, o que facilita o processo de dominação. As
produções exportadas nunca contêm análises de dramas sociais, nem propostas
fora do capitalismo. Também produções locais podem ser absorvidas, se for isto
que a população quer, pois o importante é que sejam atingidos altos índices de audiência
do entretenimento. Por displicência, o cidadão comum deixa a televisão ligada
no mesmo canal do entretenimento para assistir às notícias. É, exatamente neste
instante, que o cidadão é fisgado para as versões dos fatos que queremos
divulgar. Os fatos, como realmente ocorrem, só esporadicamente coincidem com o
que é divulgado. A televisão é difusora de um mundo de ficção. Assim, pode-se
criar a realidade virtual que melhor atende aos ‘nossos’ interesses políticos e
econômicos. As agências de notícias internacionais são ‘nossas’ e as notícias
externas já chegam filtradas. Chamamos isto, com escárnio, de ‘liberdade de
imprensa’”.
Sobre
a política, continua dizendo: “Foi criado um pensamento ideológico de
sustentação da dominação, o neoliberalismo, e ‘nossas’ agências internacionais
de controle, o FMI e o Banco Mundial, o aplicam. Além disso, ‘nossas’ agências
classificadoras de risco empurram os países recalcitrantes para o caminho da
obediência. ‘Nossos’ políticos dentro dos países dominados devem atuar conforme
previamente combinado com eles, com alguma flexibilidade para absorver as suas
especificidades, mas estes não devem se lançar em total discordância ao
combinado. ‘Nossa’ compensação aos políticos é a facilitação das suas eleições.
Pagaremos marqueteiros, cabos eleitorais ‘donos de votos’, militância
assalariada e o que mais for preciso para eles serem eleitos. A mídia irá
ajudar, nos noticiários, a quem está neste grande teatro em que a sociedade
representa o ator completamente perdido no meio do palco. Os eleitos serão os
executores locais da ‘nossa’ dominação, que resultará em muitos recursos
naturais, lucros, juros e dividendos sendo remetidos do país dominado para os donos
de capital em nosso país”.
“Às
vezes, políticos não cooptados chegam ao mais alto cargo do poder executivo, em
um regime presidencialista, e nos trazem muita dor-de-cabeça, pois demoram a
ser corrompidos ou derrubados. À medida que eles não querem ser ‘nossos’, só
resta serem expulsos. Para atingir tal objetivo, qualquer iniciativa é válida,
inclusive as desprovidas de ética. O objetivo último é garantir a continuidade
do fluxo de riquezas em direção ao norte. Quem prejudicar este objetivo é
‘nosso’ inimigo. Tudo deve ser feito para expurgá-lo. Com o povo pouco
politizado, fica mais fácil conseguirmos. Conseguimos contra Getúlio Vargas e
João Goulart”.
“Mentiras,
calunias e difamações devem ser feitas sem pena e sem dó. Precisam ser bastante
replicadas, através dos nossos blogueiros, twitteros e articulistas como
‘informações de cocheira’. Coberturas pesadas devem aparecer nos noticiários da
TV. Filósofos, economistas, professores, sociólogos e outros profissionais
adeptos da ‘nossa’ causa devem corroborar a ficção lançada, de forma que, para
a grande massa, seja algo bem real. A ficção deve mexer, principalmente, com os
temores da classe média. Por exemplo, no passado, consistia em dizer que a
pessoa a ser enxovalhada era comunista comedora de criancinha. Hoje, se espalha
que o mandatário vai meter a mão nos depósitos da poupança, seja isto possível
ou não”.
“A
maioria do Congresso brasileiro é ‘nossa’ e, em grande parte, graças aos
‘nossos’ esforços durante as eleições. Podemos criar enormes dificuldades para
a presidente governar, via Congresso, se ela não seguir ‘nossas’ determinações,
como a abertura do Pré-Sal para ‘nossas’ empresas. Só que esta chantagem não
pode ser muito escancarada para a opinião pública não ficar contra o Congresso.
Alguns juízes e membros da Polícia Federal têm que atender a ‘nossos’
interesses. Corromper totalmente as duas classes é impossível e também
desnecessário. Basta uns poucos ‘nossos’ terem a cobertura correta de políticos
e da mídia e eles cuidarão das ‘nossas’ causas. Com esta estrutura,
frequentemente, montamos ‘realidades’ cheias de ficção que a população entende
como verdade absoluta”.
“Alguns
eventos ocorridos no Brasil recentemente são aqui citados para servirem ao
propósito didático deste manual. Alguns funcionários de uma estatal, com a
conivência de empresas contratadas por ela, roubaram a estatal através de
superfaturamentos, o que permitiu quantias substanciais irem para muitos
políticos de alguns partidos e em diversas épocas. Conseguimos transformar esta
realidade em uma acusação a basicamente um único partido. E mais, em uma acusação
à totalidade dos membros deste partido, como se todos tivessem se locupletado”.
”Outro
exemplo de virtualidade transformada em realidade foi a cobertura de TV, que
inicialmente mais parecia uma convocação ou convite para uma manifestação com
inúmeros motes. A TV mostrava, desde cedo, manifestantes na rua com um ângulo
de captação da imagem bem fechado, não se podendo saber quantas pessoas
participavam. Os blogueiros e twitteros remunerados mencionavam com
antecedência, que o protesto seria contra a corrupção, os políticos em geral, a
favor do retorno dos militares ao poder, a ética na política, contra os médicos
cubanos, a catraca nos ônibus, o governo atual e, por aí, vai. Entretanto,
resumidamente, o âncora do jornal noticioso das 20 horas declarou: ‘Na
manifestação de hoje a favor do impeachment da presidente, estiveram presentes
um milhão de pessoas’. Aliás, um milhão este que um jornal local dissidente disse
que eram 210.000 pessoas”.
“Assim,
as sociedades não decidem nada em muitos países. Elas são levadas para a
decisão que nós as induzimos a tomar. Isto é a ‘democracia de poucos’,
recomendada por Edward Bernays. Na dominação através dos militares, que nós
também patrocinamos, a sociedade sofria dos percalços sabidos e, em
compensação, ela conhecia exatamente quais eram e onde estavam os opressores.
Hoje, o opressor se esconde em reuniões de pauta dos noticiários, em gabinetes
de políticos e de poderosos. No Brasil, neste momento, com argumentos do tipo
‘a Petrobras está endividada até o pescoço’, que é uma mentira deslavada, nós
queremos retirá-la das atividades petrolíferas extremamente rentáveis e, se
possível, comprá-la a preço de banana, em um processo de privatização”.
Usei
uma arma poderosa para me comunicar, que consistiu de contar uma ficção que se
encaixa como uma luva em todos os acontecimentos. Sem a certeza apoteótica com
que Deus – eu imagino – proferiu a expressão “fiat lux”, ao terminar este
artigo, usando um expediente inusitado, pergunto com dúvidas: “fez-se alguma
luz?”
Blog
do autor: http://paulometri.blogspot.com.br/
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