É bem provável que a cereja no bolo letal tenha sido o “apoio” que a Casa de Saud ofereceu à França (Arábia Saudita que acaba de aplicar as primeiras 50 chibatadas públicas, das mil a que foi condenado o blogueiro (está preso) Raif Badawi. Seu crime? Badawi mantinha um blog liberal, no qual defendia a tal, ah, tão preciosa, “liberdade de manifestação do pensamento”... só que na Arábia Saudita.
Oh – choram em uníssono as hordas ilustradas – mas eles-lá são “reino conservador”! São, isso sim, um dos aliados estratégicos mais crucialmente importantes do ocidente – tanto por causa daquele petróleo todo, como porque são mercado fabuloso para “nossas” ferramentas-armas de guerra. São “nossos” felásdaputa. Ah, sim, sim, podem fazer o que bem entendam, tudo.
A diferença é que agora os Masters of the Universe já não conseguem engambelar tão facilmente a grande maioria do Sul Global, que já compreende que, bem examinadas as coisas, praticamente não há nenhuma diferença realmente significativa entre a Casa de Saud e a nuvem de declinações da sempre mesma al-Qaeda, e o Estado Islâmico/ISIL/ISIS/ Daesh – o falso Califado atualmente dono do “Siriaque”.
A raiz de todo o inferno jihadista é, fundamentalmente, o wahabbismo medieval – e aquela sua interpretação primitiva e intolerante do Islã. Mas esse fenômeno não pode nem começar a ser discutido pela grande imprensa-empresa ocidental. Nesse setor, nada de “liberdade de manifestação do pensamento”. A Casa de Saud e sortimento variado de plutocratas do Golfo Persa são os “nossos” felásdaputa. Pois se até estão ajudando a coalizão comandada pelo Império do Caos a combater o ISIL!
Até intelectuais franceses que já disseram coisa-com-coisa sobre o jihadismo, como Olivier Roy, estão aí, agora, a perguntar-se pela “conexão entre Islã e violência”. A pergunta está errada: não se trata de Islã; trata-se de proselitismo/ideologia religioso/a exportado pelos sauditas.
Internamente, a sociedade francesa não está “ameaçada” por presença muçulmana, coisa nenhuma: está ameaçada, isso sim, pela sua própria islamofobia exacerbada.
O problema é que a França não sabe como integrar grande parte de sua população muçulmana, o que o sociólogo Farhad Khosrokhavar descreve como “terroristas à moda da casa” [orig. “terroristes maison”]. Esses terroristas made in France começam com pequenos furtos, são des-islamizados e, na sequência, re-islamizados por imãs de quarteirão e, sobretudo, pela devastação que a OTAN e o Império do Caos semearam em todas as terras do Islã.
A OTAN, de que a França faz parte, fez de tudo: de bombardear civis (na Líbia), até financiar/armar “apoiando” os chamados “rebeldes moderados” na Síria. E não fez muito melhor, tampouco, no front da liberdade de manifestação do pensamento. Segundo o tribunal de Bruxelas, pelo menos 404 jornalistas foram assassinados desde a invasão-ocupação do Iraque, pelos EUA, em 2003; 374 deles eram iraquianos. Não se pode dizer que tenham sido exatamente homenageados pela gangue atlanticista amante da liberdade. Nem receberam qualquer homenagem, os mais de 1 milhão de civis iraquianos mortos, dizimados pelo Império do Caos, ao longo de 30 anos de fúria imperial assassina. E ainda sem falar dos mais de 200 mil sírios, vítimas da guerra “Assad tem de sair”.
Onde está nossa “Lei Patriótica” à Bush?
No front do contraterrorismo, o circo post-Charlie será como maná que nunca para de chover dos céus – total “guerra ao terô”, como dizia Bush. Todos os supostos terroristas estão convenientemente mortos – e há zero-chances de algum dia conhecermos a verdadeira história. Pode ter sido a Al-Qaeda na Península Arábica (AQPA); pode ter sido divisão de funções entre AQAP e Estado Islâmico/ISIL/ISIS/Daesh; poder ter sido algum comando jihadista que atuou “com muito profissionalismo”, exceto quando, como o ministro do Interior francês Bernard Cazeneuve reconheceu, houve “um erro fatal” – que gentileza! – e deixaram um documento de identidade no Citroen preparado para a fuga.
O Ministério do Medo já distribuiu alerta mundial sobre a “continuada ameaça de ações terroristas e violência contra cidadãos e interesses dos EUA em todo o mundo.” Haverá uma conferência “de segurança” na Casa Branca dia 18 de fevereiro – agora que o ministro do Interior da França já disse que a Europa precisa “trocar informações” sobre gente que está retornando do “Siriaque”.
Não ocorre a nenhum “especialista” que, para início de conversa, foi o “ocidente” quem criou o quintal para “essa gente” desenvolver seus talentos jihadistas.
Rei Sarkô Primeiro, claro, está em atividade frenética. Já inventou sua “guerra de civilizações” que, essencialmente, é a “guerra ao terô”, de Bush, com toque à francesa, pavimentando o caminho para uma “Lei Patriótica” francesa. Mas o verdadeiro jogo nada tem a ver com “democracia”, ou “liberdade de imprensa” ou “liberdade de manifestação do pensamento”, para nem falar de “guerra de civilizações”.
Como qualquer adivinharia, a única resposta ocidental é multiplicar os tentáculos da hidra orwelliana de vigilância/segurança – que levará a beco absolutamente sem saída, porque o “ocidente” se recusa a enfrentar as verdadeiras causas do jihadismo. A seguir: uma Guantánamo made in France, sob o alto patrocínio de Dior. Graças a Deus, temos tantos políticos brilhantes, que nos protegerão.
Publicado em www.marchaverde.com.br
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