A
frente ampla: instrumento estratégico de resistência e avanço
(Roberto Amaral, abril de 2015)
“Um movimento de caráter
popular que congregue as forças progressistas é necessário para combater a
ascensão da direita”.
Ao final do memorável pleito
de 1989, propusemos, Jamil Haddad e eu, ao PT e ao seu líder Luiz Inácio Lula
da Silva, a institucionalização, ampliada ou não, da Frente Brasil Popular,
responsável pela mais importante campanha eleitoral realizada até aqui, desde a
redemocratização de 1984. Foi aquele, é preciso recordar, um pleito rico do
ponto de vista político (nada a ver com os debates das últimas eleições
presidenciais), ensejando uma discussão ideológica que jamais se repetiria, e
que, talvez, até pela sua riqueza, tenha sido condenado ao esquecimento.
A Frente, integrada por um
pequeno, mas vibrante, PT (vibrante tanto quanto sectário, em um purismo que
não conseguiu preservar), congregava o saudoso PSB e o PCdoB, numa disputa na
qual enfrentou gigantes como PMDB, PFL e PDT de então, liderado pela figura
carismática, histórica e forte de Leonel Brizola. Pois essa Frente, sem abdicar
de princípios, sem marqueteiros, levara o líder metalúrgico – dito e redito sem
viabilidade eleitoral – a disputar o segundo turno das eleições com o candidato
das forças conservadoras, do grande capital e dos grandes meios de comunicação
de massa, à frente dos quais estava, como sempre, ativo, o indefectível Sistema
Globo de Televisão.
Naquele também memorável
segundo turno perdeu a Frente Brasil Popular as eleições, como se sabe, nas
circunstâncias conhecidas. Mas, antes, aglutinara em torno de si todas as
forças populares do País, todos os partidos progressistas de então (inclusive
os hesitantes PSDB e PCB, este já sob o controle dos liquidacionistas),
intelectuais, artistas, a universidade, trabalhadores, e as grandes massas
urbanas num processo crescente de politização, pois ainda ecoavam a luta contra
a ditadura e a campanha pelas Diretas Já, certamente a mais significativa
mobilização popular conhecida pela República, lembrando a hoje também esquecida
campanha "O petróleo é nosso".
Víamos, na ideia da Frente,
a possibilidade de manter sob nossa influência as diversas correntes políticas
que haviam acorrido à campanha do segundo turno, mas que não eram eleitoras nem
do PT nem dos demais partidos – correntes, aliás, que não se sentiam identificadas
ou atraídas pelo quadro partidário brasileiro, em reconstrução naqueles anos.
Lembremos, era a primeira eleição direta para presidente, desde 1960! Ancilar a
esse propósito havia, assim sentíamos, a necessidade de dar organicidade e
proporcionar atividade permanente aos nossos partidos, em interação com a
sociedade, ou seja, compreendendo a sociedade em sua complexidade, rasgando os
limites da militância. Sem sermos pitonisas, antevíamos os embates a que
seríamos chamados a travar com o governo Collor e sua base conservadora. Mas,
acima de tudo, nós que havíamos vivido o fim do governo Jango e a insurgência
da ditadura, víamos na Frente, por limitada que fosse, a possibilidade de
manter as esquerdas brasileiras (naquela altura já pensávamos em "forças
progressistas") unidas também "fora da cadeia". Por havermos
vivido a ditadura, conhecíamos muito bem a importâncias da institucionalidade
democrática.
Mas o PT, inflado ou não
pela "vitória política" recente, e que da história política do País
só conhecia a sua própria – pequena e recente –, perseguia, já ali, um
projeto-solo. A Frente certamente sugeria a seus líderes a ameaçadora
possibilidade de crescimento das demais forças de esquerda e progressistas,
quando o que interessava àquele PT não era necessariamente o crescimento
coletivo das esquerdas como movimento político, mas o crescimento do PT como a
grande força da esquerda (assim no singular) brasileira. Vem de sua fundação
tanto o exclusivismo quanto o projeto hegemônico. Uma espécie de "destino
manifesto".
Seja por isso, seja por
aquilo, o fato objetivo é que a institucionalização da Frente foi descartada, e
nela não mais se falou, embora PSB e PCdoB permanecessem aliados ao PT e
apoiando a candidatura Lula em eleições seguintes.
A ficha começa a cair após a
vitória de 2002, confrontando o PT com o "fato novo" que era a
governança de centro-esquerda em país dominado por uma estrutura
político-jurídico-econômico-comunicacional reacionária, dependente de um
Congresso no qual as forças que haviam elegido o presidente da República eram
acachapantemente minoritárias. (Na Câmara Federal, com seus 573 membros, os
partidos que haviam apoiado o presidente Lula somavam míseros 73 deputados, se
tanto.)
A realidade, porém, imporia,
como de necessidade, em 2003, o que o idealismo havia rejeitado em 1989. Por
óbvio, a vida caminha, não se tratava mais de ressuscitar a velha "Frente
Brasil Popular", mas de arregimentar um dispositivo novo capaz de
assegurar o apoio político popular ao governo mudancista, necessidade que se
tornaria imperiosa a partir de 2005. Os dados então exigiam uma Frente capaz de
garantir a sustentabilidade ao governo para além de sua base parlamentar, uma
Frente dotada de peso eleitoral suficiente para assegurar a continuidade do
projeto de mudanças que Lula representava.
Naquela oportunidade, como
ministro da Ciência e Tecnologia, tive inúmeras oportunidades de discutir com o
presidente Lula o projeto de uma Frente (minha quase obsessão), quando, às
razões de origem, se agregavam outras, como a identificação já naquela altura
da crise dos partidos, inclusive dos nossos.
O presidente, que se
encantara com a ideia da unificação dos partidos de esquerda, começava a
considerar, com moderado entusiasmo, a ideia de uma frente, agora tendo como
fonte inspiradora a Frente Ampla uruguaia, que vinha (e assim se mantém)
somando seguidos sucessos. A História já nos disse que esse caminho foi outra
vez posto de lado.
De novo a lição da
realidade: a crise de hoje exige uma saída que a supere. Penso como inviável
uma frente de partidos, por uma razão simplíssima, a ausência de matéria prima,
e, nessa falência, destaco, porque relevante para minhas considerações, o
agravamento da crise dos partidos progressistas (note o leitor que mais não
falo em partidos de esquerda). Essa crise (cuido exclusivamente dos partidos
progressistas) é de identidade, mas é também, como consequência, de caráter
orgânico, alimentadas, ambas, pela ausência/carência de reflexão, pela
incapacidade coletiva de interpretar a realidade e, por consequência, pela
inevitável incapacidade de agir, que hoje descamba para a anomia, que
igualmente pervade o movimento social de inclinação progressista, com a
possivelmente única exceção do MST.
De todas, a mais grave é a
crise do Partido dos Trabalhadores – por irônico decretada pela conquista e o
exercício do poder – de quem se espera uma profunda autocrítica animadora e sua
virtual refundação. Essa refundação, sua necessidade, é preciso dizer, não diz
respeito tão somente ao PT, pois se seus acertos contribuíram para o avanço do
pensamento progressista em nosso País, seus erros, e principalmente seus erros
recentes, atingem em cheio todas as forças progressistas do Brasil – inclusive
as que não estão com ele alinhadas, nem alinhadas estão ou estiveram com seus
governos.
Mais do que nunca, pois, a
frente, uma frente, continua necessária, não a frente de partidos de ontem, mas
uma frente ampla de caráter nacional popular que congregue as forças
progressistas (insisto, para além das esquerdas), partidárias ou não,
organizadas de preferência, mas não necessariamente, como sindicatos, as
diversas instituições e entidades da sociedade civil, intelectuais de modo
geral, a comunidade acadêmica, o pensamento progressista em sentido amplo,
compreendendo liberais de esquerda, a saber, todos os que estiverem convencidos
de que só somando, compartilhando e alargando nossas forças para além de nosso
campo, poderemos fazer frente à ascensão do pensamento e da ação da direita,
que se organiza para a tomada do poder para nele promover, como já anunciada, a
revisão dos avanços sociais, econômicos e políticos logrados pela sociedade
brasileira nas últimas décadas.
O desafio exige compromissos
com a soberania nacional, a retomada do desenvolvimento autônomo e a
preservação dos direitos dos trabalhadores. Está à vista que tal frente não pode
se limitar a pensar o imediato, o hoje apenas, não pode se contaminar pela
pequena política, e muito menos isolar-se e inevitavelmente imolar-se num
projeto meramente eleitoral, seja com vistas a 2016, seja mesmo com vistas a
2018, pois, só pensando a longo prazo (como pensou a matriz uruguaia), seu
projeto nos levará à conquista ideológica da sociedade, a única que pode
assegurar perdurância. Não é certo que, unidos, ganharemos, mas sem dúvida,
separados, perseguindo projetos isolados, perderemos todos, como perdemos
sempre que priorizamos a luta interna em prejuízo do combate na sociedade.
Primeiro de abril – Quando
este artigo estiver sendo lido, estaremos a lembrar, para jamais esquecer, o
golpe de Estado de 1964 que depôs o presidente João Goulart para impor ao país
20 anos de uma ditadura civil-militar, com seu legado de arbítrio, cerceamento
das liberdades (inclusive da liberdade de imprensa), eliminação dos direitos
civis e das franquias democráticas, supressão da ordem constitucional, demissões,
prisões, torturas e assassinatos, corrupção e impunidade que perdura até hoje.
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