A crise não é grega, europeia ou chinesa, é mundial
Júlio C. Gambina
13.Set.15
A crise não é de alguns países que se tornam visíveis por certas dificuldades - hoje Brasil, Grécia ou China. O problema está no capitalismo no seu conjunto e, por isso, o principal problema que intoxica o sistema mundial são as relações sociais capitalistas e o exercício do poder mundial pelo principal Estado capitalista: os EUA.
Em um mês, entre meados de Junho e Julho a valorização da bolsa em Xangai caiu 30%, uma das cidades emblemáticas da expansão económica de China, e em um ano a sua dívida cresceu de forma exponencial.
Até agora, apenas se ouvia falar do crescimento económico na China, especialmente desde o início da modernização do seu modelo económico em 1978. As chamadas taxas chinesas, de 10% anual ou mais, assim o indicavam.
Nos últimos tempos falou-se de desaceleração, com taxas de 7%, muito superiores à evolução de qualquer economia nacional, de países desenvolvidos, emergentes ou atrasados. A interrogação é se nas novas condições de crise evidente isto continuará assim, e inclusivamente se afectará a taxa de crescimento e com isso o sistema mundial em nova espiral recessiva.
Entre nós a interrogação é válida, por a China ser um dos principais compradores da Argentina e um novo fornecedor de fundos por investimentos externos ou empréstimos, recusados pelo sistema mundial. É uma situação bastante generalizada na região latino-americana e caribenha, pelo que se inclui na agenda de preocupações dos governos e dos povos nesta parte do mundo.
O êxito do modelo escondia que juntamente com o crescimento se consolidavam todas as formas das relações capitalistas, entre elas o trabalho assalariado estimulado por investimentos externos difundidos por transnacionais de todo o tipo, sustentadas no incentivo do Estado.
As relações capitalistas, o dinheiro, o Estado e a dívida
Isso supunha uma inserção da China na economia mundial, como grande produtor fabril e gestor de uma fabulosa massa de dinheiro, usada principalmente para sustentar o défice estado-unidense, convertendo a China no principal credor do mayor Estado capitalista, de uma dívida pública gigantesca, a maior do mundo.
Com essas relações de produção, distribuição, troca e consumo consolidou-se um tipo de desenvolvimento sustentado na expansão do consumismo interno e na exportação, favorecendo a instalação de um sistema de crédito e investimento especulativo em mercados diversos, insuflando especialmente a bolha imobiliária e o crédito pessoal e empresarial local.
A intervenção estatal teve esse propósito, a de estimular a expansão das relações mercantis e monetárias capitalistas.
Parecia que o gigante asiático, ascendendo no pódio da produção e da economia mundial, ficava à margem da crise mundial do capitalismo.
De facto, a China disputa a primazia da produção mundial com os EUA e alguns antecipavam-se a predizer o surgimento de uma nova potência hegemónica no sistema mundial, replicando outras transições anteriores na história da ordem capitalista.
Parece que não, que a bolha especulativa tem agora o seu trajecto na China, com um Estado com muito forte capacidade de intervir a partir da sua disponibilidade de 4 milhões de milhões de dólares de reservas internacionais. É o que gera incerteza e expectativas de controlo dos desastrosos efeitos de toda a crise, especialmente entre os sectores mais vulneráveis.
O Estado estado-unidense tem, para actuar sobre a crise, o poder do monopólio da emissão de dólares. A China fá-lo a partir do poder da propriedade de activos globais, especialmente estado-unidenses e da tentativa de fazer circular a sua moeda por todo o mundo, pelo que generaliza acordos sustentados em intercâmbios em moedas locais. O objectivo é a mundialização do yuan, a moeda local da China.
Desde aí e do poder estatal sobre a propriedade das principais empresas e a gestão de âmbitos da regulação da política económica pode intervir para atenuar os efeitos da inevitável crise.
A emissão como política anticrise
Uma crise que, reiteramos, é mundial e se tornou visível em 2007/2008 em Wall Street, no mercado imobiliário, de valores e de toda a economia dos EUA, transferida para o sistema mundial, com escalas e acontecimentos visíveis em Espanha, Europa, com a Grécia no centro das notícias e da agenda actual.
Em todos esses países o tema do endividamento é chave. É um mecanismo utilizado para protelar o problema da crise e tentar superá-la.
Os EUA necessitam praticamente todos os anos de autorização parlamentar para efeito de incrementar a sua dívida, que é de 100% do seu PIB.
Ao mesmo tempo, como essa dívida gera juros que devem cancelar-se, o problema fiscal constitui-se em problema estrutural e ano após ano, da mesma forma como cresce a dívida, é sustentado um défice fiscal (maiores despesas do que receitas) que se explica com emissão sem limite, forçando a possibilidade que cada Estado tem de impor a circulação da sua moeda.
No caso dos EUA, o Estado obteve desde 1945 a prerrogativa de impor ao mundo a circulação e dominação do dólar, mesmo com a crise da convertibilidade de 1971.
Hoje ameaça com uma subida de taxas que provoca a queda das outras moedas e dos preços das matérias-primas de exportação, gerando condições para impor uma saída para a crise capitalista a partir dos interesses nacionais da dominação transnacional global. Pretende capturar os capitais excedentes do sistema mundial em busca de rentabilidade e segurança.
Para o caso grego, o Estado está limitado pelos compromissos impostos pelo euro-grupo, e o monopólio da emissão do euro, que alguns quiseram sem êxito violentar, sugerindo a emissão de euros virtuais sustentados na circulação no interior da Grécia. Era parte do que é chamado Plano B na situação grega, e inclusivamente também para outros países aprisionados na lógica do euro e na hegemonia ortodoxa da Alemanha e seu governo.
Alguma coisa como os títulos provinciais da crise de 2001, as “quase moedas” que favoreciam o intercâmbio entre os habitantes da Argentina, para além, claro, de reservas e restrições de sectores privados à circulação desses títulos públicos. Foi o mesmo argumento usado nos clubes de troca, com o reconhecimento e validação que a própria sociedade outorgava a esses meios de pagamento, que foram também objecto de especulação e fraude. Foram meios que desapareceram com o tempo, mas o Estado e a Sociedade puderam impô-los, ainda que transitoriamente, como meios de circulação e pagamento.
A soberania dos Estados nacionais está posta em discussão pela crise actual e suas manifestações monetárias que entre outras se formulam, segundo a CEPAL, como volatilidades monetárias para a América Latina, com respostas conjunturais diferenciais entre os países, alguns desvalorizando as suas moedas e outros escalonando as medidas com políticas diferenciadas, mas todos a partir de uma lógica de subordinação ao dólar ou às moedas aceites no mercado capitalista mundial.
Crise, hegemonia e alternativa
Por isso é que há muito sustentamos que a crise não é de alguns países que se tornam visíveis por certas dificuldades, hoje Brasil, Grécia ou China, mas que o problema está no capitalismo no seu conjunto e, por isso, o principal problema que intoxica o sistema mundial são as relações sociais capitalistas e o exercício do poder mundial pelo principal Estado capitalista: os EUA, que exercem a hegemonia mundial com a força do dólar, as armam e a simbologia do poder cultural.
O problema é que as suas receitas impregnam as instituições que formulam políticas com pretensão universal, a OMC, o FMI, o Banco Mundial, e com elas difundem-se as receitas liberalizadoras nas cimeiras e em todo o protocolo de assistência a países com problemas. Quando não funcionam as receitas é sempre responsabilidade da sua má aplicação pelos poderes locais, nunca do sistema ideológico que promove essas medidas.
Assumo a dificuldade de romper a lógica da receita do poder dominante para superar a crise e restabelecer a normalidade da valorização e da acumulação. Isso supõe superar o conjunto de valores culturais da sociedade capitalista, de um modelo de produção assente na exploração e no saque juntamente com uma cultura de consumismo estimulado pelas quotas do irresponsável endividamento induzido pelo sistema financeiro e pelas políticas públicas do capitalismo contemporâneo.
Temos o desafio histórico de tornar realidade as propostas emancipadoras que sucumbiram ante o projecto de dominação. Como sempre dizemos, parece uma tarefa gigantesca, que se inicia a partir do debate e da construção de uma prática social por outra ordem social e cultural de cooperação, solidariedade, e que pense na harmonia do metabolismo social, o que supõe o respeito pela reprodução da natureza, ou seja, a inclusão da reprodução da humanidade e seu habitat na sociedade.
Buenos Aires, 30 de Julho de 2015
Julio C. Gambina
Presidente da Fundación de Investigaciones Sociales y Políticas, FISYP
Até agora, apenas se ouvia falar do crescimento económico na China, especialmente desde o início da modernização do seu modelo económico em 1978. As chamadas taxas chinesas, de 10% anual ou mais, assim o indicavam.
Nos últimos tempos falou-se de desaceleração, com taxas de 7%, muito superiores à evolução de qualquer economia nacional, de países desenvolvidos, emergentes ou atrasados. A interrogação é se nas novas condições de crise evidente isto continuará assim, e inclusivamente se afectará a taxa de crescimento e com isso o sistema mundial em nova espiral recessiva.
Entre nós a interrogação é válida, por a China ser um dos principais compradores da Argentina e um novo fornecedor de fundos por investimentos externos ou empréstimos, recusados pelo sistema mundial. É uma situação bastante generalizada na região latino-americana e caribenha, pelo que se inclui na agenda de preocupações dos governos e dos povos nesta parte do mundo.
O êxito do modelo escondia que juntamente com o crescimento se consolidavam todas as formas das relações capitalistas, entre elas o trabalho assalariado estimulado por investimentos externos difundidos por transnacionais de todo o tipo, sustentadas no incentivo do Estado.
As relações capitalistas, o dinheiro, o Estado e a dívida
Isso supunha uma inserção da China na economia mundial, como grande produtor fabril e gestor de uma fabulosa massa de dinheiro, usada principalmente para sustentar o défice estado-unidense, convertendo a China no principal credor do mayor Estado capitalista, de uma dívida pública gigantesca, a maior do mundo.
Com essas relações de produção, distribuição, troca e consumo consolidou-se um tipo de desenvolvimento sustentado na expansão do consumismo interno e na exportação, favorecendo a instalação de um sistema de crédito e investimento especulativo em mercados diversos, insuflando especialmente a bolha imobiliária e o crédito pessoal e empresarial local.
A intervenção estatal teve esse propósito, a de estimular a expansão das relações mercantis e monetárias capitalistas.
Parecia que o gigante asiático, ascendendo no pódio da produção e da economia mundial, ficava à margem da crise mundial do capitalismo.
De facto, a China disputa a primazia da produção mundial com os EUA e alguns antecipavam-se a predizer o surgimento de uma nova potência hegemónica no sistema mundial, replicando outras transições anteriores na história da ordem capitalista.
Parece que não, que a bolha especulativa tem agora o seu trajecto na China, com um Estado com muito forte capacidade de intervir a partir da sua disponibilidade de 4 milhões de milhões de dólares de reservas internacionais. É o que gera incerteza e expectativas de controlo dos desastrosos efeitos de toda a crise, especialmente entre os sectores mais vulneráveis.
O Estado estado-unidense tem, para actuar sobre a crise, o poder do monopólio da emissão de dólares. A China fá-lo a partir do poder da propriedade de activos globais, especialmente estado-unidenses e da tentativa de fazer circular a sua moeda por todo o mundo, pelo que generaliza acordos sustentados em intercâmbios em moedas locais. O objectivo é a mundialização do yuan, a moeda local da China.
Desde aí e do poder estatal sobre a propriedade das principais empresas e a gestão de âmbitos da regulação da política económica pode intervir para atenuar os efeitos da inevitável crise.
A emissão como política anticrise
Uma crise que, reiteramos, é mundial e se tornou visível em 2007/2008 em Wall Street, no mercado imobiliário, de valores e de toda a economia dos EUA, transferida para o sistema mundial, com escalas e acontecimentos visíveis em Espanha, Europa, com a Grécia no centro das notícias e da agenda actual.
Em todos esses países o tema do endividamento é chave. É um mecanismo utilizado para protelar o problema da crise e tentar superá-la.
Os EUA necessitam praticamente todos os anos de autorização parlamentar para efeito de incrementar a sua dívida, que é de 100% do seu PIB.
Ao mesmo tempo, como essa dívida gera juros que devem cancelar-se, o problema fiscal constitui-se em problema estrutural e ano após ano, da mesma forma como cresce a dívida, é sustentado um défice fiscal (maiores despesas do que receitas) que se explica com emissão sem limite, forçando a possibilidade que cada Estado tem de impor a circulação da sua moeda.
No caso dos EUA, o Estado obteve desde 1945 a prerrogativa de impor ao mundo a circulação e dominação do dólar, mesmo com a crise da convertibilidade de 1971.
Hoje ameaça com uma subida de taxas que provoca a queda das outras moedas e dos preços das matérias-primas de exportação, gerando condições para impor uma saída para a crise capitalista a partir dos interesses nacionais da dominação transnacional global. Pretende capturar os capitais excedentes do sistema mundial em busca de rentabilidade e segurança.
Para o caso grego, o Estado está limitado pelos compromissos impostos pelo euro-grupo, e o monopólio da emissão do euro, que alguns quiseram sem êxito violentar, sugerindo a emissão de euros virtuais sustentados na circulação no interior da Grécia. Era parte do que é chamado Plano B na situação grega, e inclusivamente também para outros países aprisionados na lógica do euro e na hegemonia ortodoxa da Alemanha e seu governo.
Alguma coisa como os títulos provinciais da crise de 2001, as “quase moedas” que favoreciam o intercâmbio entre os habitantes da Argentina, para além, claro, de reservas e restrições de sectores privados à circulação desses títulos públicos. Foi o mesmo argumento usado nos clubes de troca, com o reconhecimento e validação que a própria sociedade outorgava a esses meios de pagamento, que foram também objecto de especulação e fraude. Foram meios que desapareceram com o tempo, mas o Estado e a Sociedade puderam impô-los, ainda que transitoriamente, como meios de circulação e pagamento.
A soberania dos Estados nacionais está posta em discussão pela crise actual e suas manifestações monetárias que entre outras se formulam, segundo a CEPAL, como volatilidades monetárias para a América Latina, com respostas conjunturais diferenciais entre os países, alguns desvalorizando as suas moedas e outros escalonando as medidas com políticas diferenciadas, mas todos a partir de uma lógica de subordinação ao dólar ou às moedas aceites no mercado capitalista mundial.
Crise, hegemonia e alternativa
Por isso é que há muito sustentamos que a crise não é de alguns países que se tornam visíveis por certas dificuldades, hoje Brasil, Grécia ou China, mas que o problema está no capitalismo no seu conjunto e, por isso, o principal problema que intoxica o sistema mundial são as relações sociais capitalistas e o exercício do poder mundial pelo principal Estado capitalista: os EUA, que exercem a hegemonia mundial com a força do dólar, as armam e a simbologia do poder cultural.
O problema é que as suas receitas impregnam as instituições que formulam políticas com pretensão universal, a OMC, o FMI, o Banco Mundial, e com elas difundem-se as receitas liberalizadoras nas cimeiras e em todo o protocolo de assistência a países com problemas. Quando não funcionam as receitas é sempre responsabilidade da sua má aplicação pelos poderes locais, nunca do sistema ideológico que promove essas medidas.
Assumo a dificuldade de romper a lógica da receita do poder dominante para superar a crise e restabelecer a normalidade da valorização e da acumulação. Isso supõe superar o conjunto de valores culturais da sociedade capitalista, de um modelo de produção assente na exploração e no saque juntamente com uma cultura de consumismo estimulado pelas quotas do irresponsável endividamento induzido pelo sistema financeiro e pelas políticas públicas do capitalismo contemporâneo.
Temos o desafio histórico de tornar realidade as propostas emancipadoras que sucumbiram ante o projecto de dominação. Como sempre dizemos, parece uma tarefa gigantesca, que se inicia a partir do debate e da construção de uma prática social por outra ordem social e cultural de cooperação, solidariedade, e que pense na harmonia do metabolismo social, o que supõe o respeito pela reprodução da natureza, ou seja, a inclusão da reprodução da humanidade e seu habitat na sociedade.
Buenos Aires, 30 de Julho de 2015
Julio C. Gambina
Presidente da Fundación de Investigaciones Sociales y Políticas, FISYP
Sem comentários:
Enviar um comentário