Prabhat Patnaik [*]
O Estado burguês não é uma coisa imobilizada.
Ele pode assumir perfis e aparências diversas. Uma ditadura fascista é um
Estado muito mais burguês (onde monopólios estão diretamente envolvidos com o
exercício do poder do Estado), tal como um "Estado Previdência"
social-democrata, uma vez que ambos estão comprometidos com a defesa e promoção
da propriedade capitalista. Por outras palavras, a forma e o conteúdo do Estado
burguês muda ao longo do tempo e esta mudança é conduzida por dois fatores: um
são as mudanças "espontâneas" que ocorrem na natureza do capitalismo,
as quais a esquerda acredita estarem a ascender a partir das tendências
imanentes do capital, a partir da lógica interna do seu funcionamento, tal como
o capitalismo da "livre competição" do tempo de Adam Smith deu lugar
ao capitalismo monopolista. E o outro fator é o grau de resistência e pressão
popular que é aplicado sobre o Estado.
O capitalismo tipicamente quer que a
intervenção do Estado seja para promover e fomentar a lógica interna do seu
funcionamento ao invés de transgredi-la. Ele está continuamente a tentar
assegurar que a pressão popular sobre o Estado seja mantida sob controle, que a
necessidade para o Estado de adoptar medidas em resposta aos desejos do povo e
contra as exigências do capital seja anulada. Em suma, ele está sempre a tentar
atenuar a democracia.
Este fato por vezes é articulado abertamente.
Em 2006, por exemplo, quando o governo Vajpayee na Índia venceu as
eleições, The Wall Street Journal lamentou este desenvolvimento e,
candidamente, observou que não se deveria permitir que só o eleitorado
escolhesse o governo. Ao invés, todos os "participantes" ("stakeholders"), incluindo "investidores", deveriam
ter uma palavra na matéria! Mais recentemente, na Europa, na esteira do
referendo na Grécia, o eleitorado foi descrito como um
"aborrecimento" pelos porta-vozes da finança.
Naturalmente, mudanças tais como a de 2006,
não afetam necessariamente os "investidores". O governo seguinte,
desde que não afaste o país do turbilhão dos fluxos financeiros globais (que a
globalização, o resultado da lógica de funcionamento do capital,
necessariamente implica), é constrangido a prosseguir as mesmas políticas
depois de vencer a eleição, por medo de que qualquer desvio das mesmas ofenda o
capital financeiro e, com isso, provoque saídas de capital e uma crise
financeira. Mas isto apenas sublinha o fato de que os caprichos do capital
financeiro suprimem as exigências do povo numa economia exposta aos fluxos
financeiros globais, isto é, que tal exposição atenua a democracia. Não importa
quem o povo eleja, não importa que compromissos foram assumidos junto ao povo
antes das eleições, o governo recém-eleito necessariamente trai estes compromissos
desde que retenha as mesmas ligações externas do anterior (como o Syriza na
Grécia acabou de demonstrar).
Mas com êxito ou não, a resistência do povo atua
como um contrapeso contra esta tendência "espontânea" do capital para
atenuar a democracia e, em certas conjunturas específicas, ela demonstra-se
mais poderosa. O período do pós guerra na Europa – quando a resistência interna
na classe trabalhadora (Winston Churchill, recordem-se, perdeu as eleições
britânicas efetuadas imediatamente após a guerra devido ao horror da classe
trabalhadora em relação às suas políticas sócio-econômicas), e o temor do
Comunismo, forçou o capital a fazer concessões – é um exemplo óbvio de uma tal
conjuntura. A "gestão da procura" keynesiana e o "Estado
Previdência" foram seus produtos.
Por outras palavras, naquele período o Estado
burguês, sem deixar de ser um Estado burguês, foi empurrado a uma direção
previdenciária (welfarist) sob a pressão popular e contra os desejos da
própria burguesia. Numa data posterior, com o capital tornando-se globalizado
em consequência das suas próprias tendências imanentes, nem o poder do Estado Nação
nem o do movimento da classe trabalhadora (o qual continua a ser organizado em
bases nacionais) foi suficientemente poderoso para impedir a imposição da sua
agenda. A "espontaneidade" do sistema reafirmou-se livrando-se da
interferência do Estado contra a sua lógica interna, a qual dirige-se para o
enfraquecimento da resistência e dos direitos dos trabalhadores, para a criação
de um exército de reserva de trabalho, para repelir medidas de Estado
previdência e para uma atenuação da democracia
Uma vez que as tendências espontâneas do
capital são sempre para pressionar o Estado burguês em direção ao
autoritarismo, a defesa e aprofundamento do seu conteúdo democrático, através
da mobilização da resistência popular, torna-se uma tarefa da esquerda. A
esquerda, portanto, não está preocupada apenas em calmamente reunir suas forças
dentro do corpo de alguma entidade imobilizada
(fixed) chamada Estado burguês,
até que estas forças se tornem suficientemente fortes para derrubar aquele
Estado. Ela está preocupada em defender
a todo momento o conteúdo
democrático do Estado burguês contra a tentativa da própria burguesia de
corroer esse conteúdo.
Dito de modo diferente, dentro do objetivo
estratégico global de substituir o Estado burguês existente, defender o
conteúdo democrático do sistema constitucional-político contra a tentativa da
burguesia para empurrá-lo numa direção mais autoritária, torna-se uma táctica
essencial na luta para a ultrapassagem do Estado burguês. Isto acontece porque
tal luta em defesa do conteúdo democrático do Estado burguês também se torna
uma luta contra os escalões dominantes da burguesia que estão por trás do ímpeto
autoritário.
Na verdade, paradoxalmente, defender o que
quer que exista de conteúdo democrático no Estado burguês é uma intervenção
poderosa e eficaz no combate global contra o Estado burguês. Isto acontece
porque este modo de superar o Estado burguês atua como uma restrição contra a
imposição numa data posterior de qualquer nova espécie de autoritarismo, de
qualquer ditadura totalitária. E isto envolve em todas as etapas mobilizar
grandes massas de povo, junto com outras formações políticas que também se
oponham ao autoritarismo, o que lhe dá uma potência muito maior.
Tudo isto é ilustrado vivamente na atual
situação indiana. Para executar "reformas" neoliberais tais como
tomar terras de camponeses sem o seu consentimento (um exemplo do que Marx chamou
"acumulação primitiva de capital") e introduzir "flexibilidade
no mercado trabalho" (o que significa reduzir os direitos e a resistência
dos trabalhadores), que estão de acordo com as tendência imanentes do capital,
a Índia corporativa apoiou nas últimas eleições uma formação política suportada
por uma organização comunal-fascista cujo objetivo confessado continua a ser a
criação de uma "Nação Hindu" ("
Hindu Rashtra "). Esta aliança corporativa-comunal que adquiriu
poder já está a desviar o país bastante significativamente numa direção
autoritária. É importante nesta conjuntura que ao invés de menosprezar qualquer
conteúdo democrático que exista dentro do Estado, tratando-o como
"impostura", a esquerda defenda este conteúdo democrático do Estado burguês.
O conteúdo democrático do Estado burguês, por outras palavras, torna-se um
canteiro para a luta de classe. Só defendendo a democracia a esquerda pode
esperar transcender o sistema.
20/Setembro/2015
[*] Economista, indiano,
ver Wikipedia
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
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