A Líbia sob fogo da OTAN: um festim de sangue
Cynthia McKinney*
16.Jun.11 :: Outros autores
É claramente evidente que a OTAN excedeu o seu mandato, mentiu acerca das suas intenções, é responsável por assassínios extra-judiciais, tudo em nome da “intervenção humanitária”. No período em que integrei o Comité de Relações Internacionais no Congresso, entre 1993 e 2003, tornou-se-me evidente que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) constituía um anacronismo. Fundada em 1945, no final da II Guerra Mundial, a OTAN foi criada pelos EUA como resposta à sobrevivência da União Soviética enquanto Estado Socialista. A OTAN constituía o garante político, para os EUA, de que a dominação capitalista sobre as economias Europeia, Asiática e Africana iria prosseguir. E esta garantia assegurava também a sobrevivência do apartheid global então existente.
A OTAN é um pacto de segurança colectiva através do qual os estados membros assumem que um ataque contra qualquer deles é um ataque contra todos eles. Por conseguinte, se a União Soviética tivesse atacado um qualquer dos seus membros europeus, o escudo militar norte-americano seria activado. A resposta soviética a este pacto foi o Pacto de Varsóvia, que sustentou um “cordão sanitário” em torno do território russo central, na eventualidade de um ataque da OTAN. Dessa forma o mundo foi cindido em blocos, dando origem à “Guerra Fria”.
Os “guerreiros frios” confessos dos dias de hoje continuam a encarar o mundo dessa forma, e não conseguem ultrapassar a visão de uma China Comunista e de um Império Soviético amputado como Estados inimigos dos EUA cujas movimentações, seja em que parte do planeta se verifiquem, devem ser contrariadas. O colapso da União Soviética proporcionou uma oportunidade acelerada para que a hegemonia dos EUA fosse exercida em áreas de anterior influência russa. Territórios africanos e eurasiáticos onde se situam antigos estados soviéticos satélites, bem como o Afeganistão, o Paquistão e outros têm sempre assumido um lugar predominante nas teorias da “contenção” e do “ricochete” que até aos dias de hoje orientam a política dos EUA.
Com tudo isto como pano de fundo, o ataque de foguetões contra Tripoli na noite passada é inexplicável. Tripoli, uma área metropolitana com cerca de 2 milhões de habitantes, suportou 22 a 25 bombardeamentos ontem à noite, abalando e partindo janelas e fazendo tremer o meu hotel até aos alicerces.
Abandonei o meu quarto no Hotel Rexis Al Nasr, caminhei pelo exterior, e podia sentir o cheiro dos explosivos. Por toda a parte, habitantes locais de mistura com jornalistas estrangeiros de todo o mundo. Enquanto ali estávamos, mais bombas atingiram vários pontos da cidade. As explosões clareavam o céu de vermelho, e mais foguetões disparados por jactos OTAN atravessavam as nuvens baixas antes de explodir.
Podia sentir na boca a poeira espessa levantada pelas bombas. Pensei de imediato nas munições de urânio empobrecido que se diz estarem a ser utilizadas, bem como as de fósforo branco. Se estão a ser utilizadas armas de urânio empobrecido, de que forma afectarão os civis locais?
Mulheres transportando crianças pequenas fugiam para fora do hotel. Outras corriam a lavar a poeira que lhes entrara para os olhos. Com as sereias rugindo, viaturas de emergência surgiram na zona sob ataque. Os alarmes dos carros, disparados pelos impactos sucessivos, podiam ouvir-se sob os cânticos desafiadores do povo.
Tiros esporádicos de armas de fogo romperam, ao que me pareceu em todo o lado à minha volta. A estação Euronews mostrou imagens de enfermeiras e médicos entoando cânticos, nos próprios hospitais em que tratavam aqueles que a última investida de choque e assombro da NATO deixara feridos. De repente, as ruas à volta do meu hotel encheram-se de gente a cantar e de automóveis a buzinar. Dentro do hotel, uma mulher líbia transportando uma criança aproximou-se de mim e perguntou-me por que lhes estão a fazer isto?
Quaisquer que fossem os objectivos militares do ataque (e eu e muitos outros questionamos a utilidade militar de semelhantes ataques) permanece o facto de que este ataque aéreo foi lançado contra uma grande cidade repleta de centenas de milhares de civis.
Reflecti também se algum dos políticos que autorizou este ataque aéreo alguma vez se encontrou do lado errado de munições de urânio empobrecido guiadas a laser. Teriam alguma vez presenciado os danos horríveis que estas armas provocam numa cidade e nos seus habitantes? Pode suceder que, se alguma vez tivessem estado numa cidade sob ataque aéreo, se tivessem sentido o impacto destas bombas, se tivessem visto a devastação causada não estivessem tão dispostos a autorizar um ataque contra a população civil.
Estou convicta de que a OTAN não teria sido tão negligente com a vida humana se tivesse sido convocada para atacar uma cidade importante do ocidente. Aliás, estou convicta de que tal nunca sucederia. A OTAN (tal como os EUA e os seus aliados) apenas ataca os pobres e os desprotegidos do 3º mundo.
No dia anterior, numa iniciativa de mulheres em Tripoli, uma mulher aproximou-se de mim de lágrimas nos olhos: a mãe está em Benghazi e ela não pode voltar para saber se a mãe está ou não bem. As pessoas do oriente e do ocidente do país viviam em comum, amavam-se, casavam entre si. Agora, em consequência da “intervenção humanitária” da OTAN, geraram-se e endurecem divisões artificiais. O recrutamento de aliados pela OTAN na Líbia oriental insere-se na mesma estratégia de “guerra fria” que procurava assassinar Fidel Castro e derrubar a Revolução Cubana com cubanos “aclimatados” dispostos a cometer actos de terrorismo contra o seu anterior país. Mais recentemente, a República Democrática do Congo foi ameaçada de amputação territorial, depois de Laurent Kabila recusar uma solicitação da Administração Clinton no sentido de abandonar a zona oriental do seu país. Laurent Kabila descreveu pessoalmente o encontro em que esta solicitação e a respectiva recusa sucederam. Este plano de balcanização e de amputação de um país africano (como sucedeu no Sudão) só não foi por diante porque à recusa de Kabila se juntou a mobilização de congoleses em todo o mundo, que se organizaram em defesa da integridade territorial do seu país.
Horrorizou-me saber que os aliados da OTAN na Líbia (os “Rebeldes”) têm linchado e massacrado os seus compatriotas de pele mais escura, depois da imprensa dos EUA ter identificado os Negros Líbios como “mercenários negros”. Digam-me agora, por favor: vão expulsar os negros de África? Informações da imprensa sugerem que os americanos ficaram “surpreendidos” por encontrar pessoas de pele escura em África. O que é que isto nos diz acerca desta gente?
O triste facto, entretanto, é que são os próprios líbios que têm sido insultados, aterrorizados, linchados, assassinados, em consequência das informações que hiper-sensacionalizaram esta grosseira ignorância. Quem é que vai ser responsabilizado pelas vidas perdidas no frenesim sanguinário desencadeado por estas mentiras?
E isto traz-me de regresso à pergunta que a mulher me colocou: porque está isto a acontecer? Honestamente, não pude dar-lhe a resposta educada e razoável que ela esperava. Do meu ponto de vista, todo o público internacional se debate com essa questão “Porquê?”.
O que sabemos e está muito claro é isto: aquilo a que eu assisti na noite passada não é uma “intervenção humanitária”.
Muitos alimentam a suspeita de que a questão é a quantidade de petróleo existente no subsolo líbio. Podem chamar-me céptica, mas dá que pensar como é que forças combinadas de terra, mar e ar da OTAN e dos EUA, custando milhares de milhões de dólares, são mobilizados contra um relativamente pequeno país do Norte de África e se supõe que todos fiquemos convencidos de que se trata de defender a democracia.
O que eu vi nas longas filas de espera para obter combustível não é “intervenção humanitária”. A recusa em autorizar fornecimento de medicamentos para os hospitais não é “intervenção humanitária”. O que é mais triste e que sou incapaz de dar uma explicação plausível do porquê às pessoas agora aterrorizadas pelas bombas da OTAN, mas é claramente evidente que a OTAN excedeu o seu mandato, mentiu acerca das suas intenções, é responsável por assassínios extra-judiciais, tudo em nome da “intervenção humanitária”.
Onde está o Congresso quando o Presidente excede as suas competências no desencadear da guerra? Onde está a “consciência do Congresso”?
Para aqueles que discordam do conselho de Dick Cheney, de que preparemos a próxima geração para a guerra, é necessário que dêem apoio a quem quer que seja que esteja disposto a pôr fim a esta loucura. Por favor organizem-se e depois votem pela paz. A gente de todo o mundo precisa de que nos levantemos e falemos, em seu nome e no nosso, porque a Venezuela e o Irão também estão sob ameaça. Os líbios não precisam dos helicópteros bombardeiros da OTAN, nem de bombas inteligentes, mísseis de cruzeiro ou bombas de urânio empobrecido para resolver os seus problemas internos. A “intervenção humanitária” da OTAN tem que ser denunciada pelo que realmente é à luz crua da verdade.
Enquanto anoitece sobre Tripoli tenho, juntamente com a população civil, de me preparar para mais “intervencionismo humanitário” da OTAN.
Parem de bombardear África e os pobres de todo o mundo!
*Antiga membro do Congresso dos EUA eleita pelo Partido Democrático, integra actualmente o Green Party, pelo qual foi candidata à eleição presidencial de 2008
A OTAN é um pacto de segurança colectiva através do qual os estados membros assumem que um ataque contra qualquer deles é um ataque contra todos eles. Por conseguinte, se a União Soviética tivesse atacado um qualquer dos seus membros europeus, o escudo militar norte-americano seria activado. A resposta soviética a este pacto foi o Pacto de Varsóvia, que sustentou um “cordão sanitário” em torno do território russo central, na eventualidade de um ataque da OTAN. Dessa forma o mundo foi cindido em blocos, dando origem à “Guerra Fria”.
Os “guerreiros frios” confessos dos dias de hoje continuam a encarar o mundo dessa forma, e não conseguem ultrapassar a visão de uma China Comunista e de um Império Soviético amputado como Estados inimigos dos EUA cujas movimentações, seja em que parte do planeta se verifiquem, devem ser contrariadas. O colapso da União Soviética proporcionou uma oportunidade acelerada para que a hegemonia dos EUA fosse exercida em áreas de anterior influência russa. Territórios africanos e eurasiáticos onde se situam antigos estados soviéticos satélites, bem como o Afeganistão, o Paquistão e outros têm sempre assumido um lugar predominante nas teorias da “contenção” e do “ricochete” que até aos dias de hoje orientam a política dos EUA.
Com tudo isto como pano de fundo, o ataque de foguetões contra Tripoli na noite passada é inexplicável. Tripoli, uma área metropolitana com cerca de 2 milhões de habitantes, suportou 22 a 25 bombardeamentos ontem à noite, abalando e partindo janelas e fazendo tremer o meu hotel até aos alicerces.
Abandonei o meu quarto no Hotel Rexis Al Nasr, caminhei pelo exterior, e podia sentir o cheiro dos explosivos. Por toda a parte, habitantes locais de mistura com jornalistas estrangeiros de todo o mundo. Enquanto ali estávamos, mais bombas atingiram vários pontos da cidade. As explosões clareavam o céu de vermelho, e mais foguetões disparados por jactos OTAN atravessavam as nuvens baixas antes de explodir.
Podia sentir na boca a poeira espessa levantada pelas bombas. Pensei de imediato nas munições de urânio empobrecido que se diz estarem a ser utilizadas, bem como as de fósforo branco. Se estão a ser utilizadas armas de urânio empobrecido, de que forma afectarão os civis locais?
Mulheres transportando crianças pequenas fugiam para fora do hotel. Outras corriam a lavar a poeira que lhes entrara para os olhos. Com as sereias rugindo, viaturas de emergência surgiram na zona sob ataque. Os alarmes dos carros, disparados pelos impactos sucessivos, podiam ouvir-se sob os cânticos desafiadores do povo.
Tiros esporádicos de armas de fogo romperam, ao que me pareceu em todo o lado à minha volta. A estação Euronews mostrou imagens de enfermeiras e médicos entoando cânticos, nos próprios hospitais em que tratavam aqueles que a última investida de choque e assombro da NATO deixara feridos. De repente, as ruas à volta do meu hotel encheram-se de gente a cantar e de automóveis a buzinar. Dentro do hotel, uma mulher líbia transportando uma criança aproximou-se de mim e perguntou-me por que lhes estão a fazer isto?
Quaisquer que fossem os objectivos militares do ataque (e eu e muitos outros questionamos a utilidade militar de semelhantes ataques) permanece o facto de que este ataque aéreo foi lançado contra uma grande cidade repleta de centenas de milhares de civis.
Reflecti também se algum dos políticos que autorizou este ataque aéreo alguma vez se encontrou do lado errado de munições de urânio empobrecido guiadas a laser. Teriam alguma vez presenciado os danos horríveis que estas armas provocam numa cidade e nos seus habitantes? Pode suceder que, se alguma vez tivessem estado numa cidade sob ataque aéreo, se tivessem sentido o impacto destas bombas, se tivessem visto a devastação causada não estivessem tão dispostos a autorizar um ataque contra a população civil.
Estou convicta de que a OTAN não teria sido tão negligente com a vida humana se tivesse sido convocada para atacar uma cidade importante do ocidente. Aliás, estou convicta de que tal nunca sucederia. A OTAN (tal como os EUA e os seus aliados) apenas ataca os pobres e os desprotegidos do 3º mundo.
No dia anterior, numa iniciativa de mulheres em Tripoli, uma mulher aproximou-se de mim de lágrimas nos olhos: a mãe está em Benghazi e ela não pode voltar para saber se a mãe está ou não bem. As pessoas do oriente e do ocidente do país viviam em comum, amavam-se, casavam entre si. Agora, em consequência da “intervenção humanitária” da OTAN, geraram-se e endurecem divisões artificiais. O recrutamento de aliados pela OTAN na Líbia oriental insere-se na mesma estratégia de “guerra fria” que procurava assassinar Fidel Castro e derrubar a Revolução Cubana com cubanos “aclimatados” dispostos a cometer actos de terrorismo contra o seu anterior país. Mais recentemente, a República Democrática do Congo foi ameaçada de amputação territorial, depois de Laurent Kabila recusar uma solicitação da Administração Clinton no sentido de abandonar a zona oriental do seu país. Laurent Kabila descreveu pessoalmente o encontro em que esta solicitação e a respectiva recusa sucederam. Este plano de balcanização e de amputação de um país africano (como sucedeu no Sudão) só não foi por diante porque à recusa de Kabila se juntou a mobilização de congoleses em todo o mundo, que se organizaram em defesa da integridade territorial do seu país.
Horrorizou-me saber que os aliados da OTAN na Líbia (os “Rebeldes”) têm linchado e massacrado os seus compatriotas de pele mais escura, depois da imprensa dos EUA ter identificado os Negros Líbios como “mercenários negros”. Digam-me agora, por favor: vão expulsar os negros de África? Informações da imprensa sugerem que os americanos ficaram “surpreendidos” por encontrar pessoas de pele escura em África. O que é que isto nos diz acerca desta gente?
O triste facto, entretanto, é que são os próprios líbios que têm sido insultados, aterrorizados, linchados, assassinados, em consequência das informações que hiper-sensacionalizaram esta grosseira ignorância. Quem é que vai ser responsabilizado pelas vidas perdidas no frenesim sanguinário desencadeado por estas mentiras?
E isto traz-me de regresso à pergunta que a mulher me colocou: porque está isto a acontecer? Honestamente, não pude dar-lhe a resposta educada e razoável que ela esperava. Do meu ponto de vista, todo o público internacional se debate com essa questão “Porquê?”.
O que sabemos e está muito claro é isto: aquilo a que eu assisti na noite passada não é uma “intervenção humanitária”.
Muitos alimentam a suspeita de que a questão é a quantidade de petróleo existente no subsolo líbio. Podem chamar-me céptica, mas dá que pensar como é que forças combinadas de terra, mar e ar da OTAN e dos EUA, custando milhares de milhões de dólares, são mobilizados contra um relativamente pequeno país do Norte de África e se supõe que todos fiquemos convencidos de que se trata de defender a democracia.
O que eu vi nas longas filas de espera para obter combustível não é “intervenção humanitária”. A recusa em autorizar fornecimento de medicamentos para os hospitais não é “intervenção humanitária”. O que é mais triste e que sou incapaz de dar uma explicação plausível do porquê às pessoas agora aterrorizadas pelas bombas da OTAN, mas é claramente evidente que a OTAN excedeu o seu mandato, mentiu acerca das suas intenções, é responsável por assassínios extra-judiciais, tudo em nome da “intervenção humanitária”.
Onde está o Congresso quando o Presidente excede as suas competências no desencadear da guerra? Onde está a “consciência do Congresso”?
Para aqueles que discordam do conselho de Dick Cheney, de que preparemos a próxima geração para a guerra, é necessário que dêem apoio a quem quer que seja que esteja disposto a pôr fim a esta loucura. Por favor organizem-se e depois votem pela paz. A gente de todo o mundo precisa de que nos levantemos e falemos, em seu nome e no nosso, porque a Venezuela e o Irão também estão sob ameaça. Os líbios não precisam dos helicópteros bombardeiros da OTAN, nem de bombas inteligentes, mísseis de cruzeiro ou bombas de urânio empobrecido para resolver os seus problemas internos. A “intervenção humanitária” da OTAN tem que ser denunciada pelo que realmente é à luz crua da verdade.
Enquanto anoitece sobre Tripoli tenho, juntamente com a população civil, de me preparar para mais “intervencionismo humanitário” da OTAN.
Parem de bombardear África e os pobres de todo o mundo!
*Antiga membro do Congresso dos EUA eleita pelo Partido Democrático, integra actualmente o Green Party, pelo qual foi candidata à eleição presidencial de 2008
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