O machado de guerra, o anzol da paz e os crápulas transparentes.
Venezuela e Colômbia, dois processos relacionados na estratégia regional do Império.
Jorge Beinstein
15.Mai.15 ::
A América Latina e o Caribe constituem um espaço decisivo projecto imperialista de super-exploração. A sua recolonização integral é a peça chave de uma ofensiva planetária cuja implantação na região abarca uma ampla gama de operações convergentes. Uma mega estratégia flexível que inclui as desestabilizações de média intensidade no Brasil e Argentina, a intervenção directa encoberta na Colômbia, os golpes de estado em Honduras ou Paraguai, a tentativa de desestabilização de alta intensidade apontando para a intervenção militar na Venezuela, o ensaio de “abraço-de-urso” buscando desarticular Cuba, a instalação de bases militares avançadas no Peru.
Seria equivocado subestimar as especificidades dos casos colombiano e venezuelano, porém também seria grave limitar-nos às tramas nacionais ou dotá-las de uma autonomia excessiva. Muito se escreveu acerca da globalização do capitalismo às vezes para diluí-lo em uma dinâmica supranacional desconcertante, porém em certos casos com um resultado oposto onde o global aparece como uma referência abstracta, indescritível ou bem operando como uma força exógena misteriosa sobre o aparentemente “concreto” ou “tangível”, o que está ao alcance da mão, tão complicado e “nacional” que apenas pode ser entendido pelos que estão submersos nessa realidade. Então, se exagera o nível de poder real das oligarquias e máfias locais, de suas supostas fracções “reaccionárias” ou “civilizadas”, de suas contradições em países onde, como na Colômbia, estão instaladas bases militares do Império ou onde, como na Colômbia e Venezuela, proliferam os negócios transnacionalizados financeiros, mediáticos, narcos, comerciais, etc. e onde importantes sectores altos e médios sociais são, a partir do ponto de vista político-cultural, simples prolongamentos coloniais da sociedade estadunidense.
Actualmente, os Estados Unidos implantam uma guerra global cujo fracasso significaria o fim do Império. A lógica da reprodução do parasitismo norte-americano leva a superpotência a uma multiplicação de ofensivas à escala planetária, destinadas a quebrar os obstáculos que freiam seu projecto de superexploração devastadora dos recursos naturais e humanos do conjunto da periferia. Os dirigentes do Império consideram que essa pilhagem desaceleraria a decadência em curso, impediria o colapso do dólar, baixaria drasticamente os custos de mercadorias e salários coloniais engordando os benefícios de suas empresas, sustentando seus mercados internos cada vez mais concentrados.
A América Latina e o Caribe constituem um espaço decisivo do dito projecto. Sua recolonização integral é a peça chave de uma ofensiva planetária cuja implantação na região abarca uma ampla gama de operações convergentes. Trata-se de uma mega estratégia flexível que inclui as desestabilizações de média intensidade no Brasil e Argentina, a intervenção directa encoberta na Colômbia, os golpes de estado em Honduras ou Paraguai, a tentativa de desestabilização de alta intensidade apontando para a intervenção militar na Venezuela, o ensaio de “abraço-de-urso” buscando desarticular Cuba, a instalação de bases militares avançadas no Peru, etc. O objectivo final é a transformação do quintal latino-americano em uma região caótica, sem barreiras estatais nem rebeldias significativas a sua dominação.
A exacerbação das intervenções imperialistas coincide com (busca aproveitar o) declínio dos governos progressistas cujas dificuldades abrem brechas que facilitam essas investidas. O aprofundamento da crise global impacta sobre a América Latina. As altas taxas de crescimento económico ficaram no passado, as contradições sociais se aprofundam e colocam em xeque os equilíbrios progressistas que demonstram sua fragilidade. Um bom exemplo disso é o Brasil, onde o governo direitiza sua política sem conseguir acalmar o apetite das elites e das classes médias reaccionárias cada vez mais reaccionárias que buscam o revanchismo, apontando para a hiperconcentração de renda e submissão integral dos pobres.
É dentro desse contexto global-regional que devem ser situadas as operações imperiais em curso sobre a Colômbia e a Venezuela.
O machado de guerra
A Venezuela aparece como o objectivo central do capítulo da guerra energética global dos Estados Unidos. A república bolivariana conta com 20% das reservas mundiais de petróleo convencional, o primeiro global. A confrontação deste fato com a informação sobre as reservas limitadas e declinantes em médio prazo do petróleo convencional e de xisto nos Estados Unidos bastaria para medir a urgência do Império em devorar esse bocado. A propaganda acerca das supostas imensas reservas norte-americanas de petróleo de xisto terminou por se chocar com a dura realidade: recentemente a Agência de Energia dos Estados Unidos deu a conhecer que antes do fim da década actual a produção norte-americana de petróleo de xisto chegará a seu nível máximo depois do qual começará a decair. Na realidade, a crise desse sector já começou impulsionada pela baixa do preço que reduziu sensivelmente seus benefícios (fazendo-os negativos em um número crescente de casos).
Porém, não se trata apenas de petróleo, em que pese a demonização mediática internacional do processo venezuelano. O mesmo continua operando como um incentivo importante para os movimentos populares da região, para os comportamentos estatais independentes a respeito da dominação estadunidense. Apesar do falecimento de Chávez, a Venezuela segue sendo uma peça decisiva de articulações rebeldes ante o poder imperial, como ALBA e outras iniciativas regionais, e para outros espaços da periferia.
A “Ordem Executiva” de Obama contra a Venezuela declarando-a uma “ameaça extraordinária” à segurança nacional dos Estados Unidos não é um exercício retórico, mas um passo decisivo de uma ofensiva que busca intimidar o governo e as forças armadas venezuelanas, alentar a oposição, mobilizando seus grupos conspirativos mais radicais. Com essa decisão, Washington dá um salto qualitativo na deslegitimação do estado venezuelano ante o Ocidente, abrindo dessa maneira um capítulo de intervenções directas e clandestinas, de reconhecimento legal ou, de fato, de “representantes da oposição”, de apoio a possíveis levantes armados, a uma agressão do exército colombiano, etc., ou seja, a cenários conhecidos em outros lugares da periferia como a Síria ou a Líbia. Essa é a linha de ação principal.
Não faltam funcionários de governos progressistas latino-americanos e, inclusive, do próprio governo venezuelano que estão propensos a ver o lado moderado da tormenta, supondo que a declaração imperial tende bem mais a pressionar a Venezuela que empurrá-la astutamente para a direita, buscando a instalação de um “governo de unidade nacional” (mistura pragmática de chavistas razoáveis e opositores conciliadores), de amigo ou menos inimigo dos Estados Unidos. Na realidade, essa ilusão também constitui a estratégia estadunidense golpeando por um lado e oferecendo, ao mesmo tempo, uma saída pacífica tentando assim abrandar o campo inimigo, criar fissuras e deserções. O jogo constitui parte do manual para principiantes em guerras coloniais.
Washington sabe muito bem que, a longo prazo, não existe alternativa suave para a Venezuela, qualquer direitização brutal ou gradual geraria uma concentração de renda acompanhada inevitavelmente por revanches sociais das classes subalternas que, automaticamente, faria eclodir rebeliões populares. O processo bolivariano não trouxe a transição socialista prometida, não quebrou a espinha dorsal do capitalismo (partida essencial do caminho pós-capitalista), se atolou em uma confusa e interminável “transição” para a transição anunciada. Porém, o fez oferecendo numerosas conquistas sociais, mobilizando os de baixo, enchendo suas cabeças de esperanças, forjando identidade popular, auto-estima dos humildes. Isso não se pode apagar facilmente.
Assim como existe na Venezuela um fascismo maciço nas classes médias e altas, que apenas se forma com uma contra-revolução sangrenta, também existe um chavismo profundo nas classes baixas que aprenderam a odiar o capitalismo, os Estados Unidos, e que sabe lutar. O chavismo não esmagou o país burguês impondo o país popular e socialista. O resultado de sua condução desordenada foi a criação de dois países incompatíveis entre si.
Para Washington trata-se de conquistar a Venezuela, nem mais nem menos, não para instaurar uma nova ordem colonial, mas para parasitar livremente sobre o caos, para saquear riquezas navegando em meio da desarticulação violenta de uma sociedade estrategicamente submetida. Para visualizar o futuro venezuelano desejado por Washington não basta ler os velhos textos sobre a ascensão do fascismo na Itália ou dos neofascismos militares mais recentes na América Latina. É preciso olhar firmemente para o Iraque ou a Líbia.
O anzol da paz
Uma peça chave na conquista da Venezuela é o exército colombiano, a força armada regular com maior experiência de combate da região, 460 mil pessoas (incluindo as três armas mais a polícia nacional). De longe é o maior aliado militar dos Estados Unidos na América Latina, útil tanto para a realização de incursões rápidas como para uma invasão em grande escala e como aparato de apoio a uma guerra prolongada na Venezuela. É necessário acrescentar a estas forças profissionais várias dezenas de milhares de paramilitares imediatamente operativos ou de fácil recrutamento.
Porém, essa força agressiva potencial está imóvel no território colombiano por uma insurgência que não pode ser dobrada após meio século de repressão e que no caso de guerra civil ou de invasão à Venezuela poderia converter-se no núcleo principal de uma estendida guerra popular abarcando ambos os países ou pelo menos em um aliado estratégico decisivo dos combatentes venezuelanos. Para os estrategistas do Império, tirar da cena regional essa insurgência é um objectivo prioritário. Como não puderam fazê-lo pela via militar tentam agora conseguir através de um complexo operativo envolvente de pressões directas e indirectas e de ofertas tentadoras combinadas com a ameaça (e a prática) permanente do porrete bélico. Tentando converter a crescente debilidade (e decrescente legitimidade) do regime colombiano em uma sorte de armadilha letal colocada aos pés da insurgência, “permitindo” sua extensão (tendendo para o excesso de extensão) política mais ou menos legal com a finalidade de criar ataduras sistémicas de todo tipo (institucionais, políticas, ideológicas, sociais, etc.) que a impeçam sair da rota do apaziguamento. À trama local soma-se um não menos confuso jogo de pressões regionais e extra-regionais mais ou menos “amistosas” completando o cerco psicológico. Apaziguar, deslocar, dormir, penetrar esse factor perturbador extremamente perigoso é a obsessão desses manipuladores de alto voo. A estratégia tem algo de ciência e algo de póquer porque se baseia principalmente na capacidade (difícil de medir) de absorção (de degradação politiqueira) do regime colombiano, cuja evolução se articula cada vez mais em torno de duas dinâmicas inter-relacionadas que podem ser maquiadas, adornadas com garantias democráticas ilusórias, porém não eliminadas já que constituem o núcleo duro, sobredeterminante da reprodução do sistema, de sua inserção no capitalismo global.
Em primeiro lugar, o aparato militar cujo sobredimensionamento com relação à sociedade colombiana corresponde à longa guerra interna da qual foi protagonista, mas também à vinculação-dependência do aparato militar norte-americano e suas estratégias coloniais. Atravessado por negócios mafiosos próprios e laços directos com o império, dispõe de significativas margens de autonomia das camarilhas burguesas locais, com as quais compartilha interesses. Não é segredo para ninguém que os Estados Unidos contam com as forças armadas da Colômbia para suas futuras operações militares regionais e extra-regionais. Somente um progressista iludido pode acreditar que o Império e seus lacaios locais podem aceitar pacificamente a democratização e redução significativa dessa estrutura criminosa.
Em segundo lugar, a crescente hegemonia económica na Colômbia do complexo agrário-minerador exportador (agricultura quase sem camponeses e mineração ultraextrativista), que expulsa a população e destrói o meio ambiente, o modelo se impõe à lógica global do capitalismo, de seus polos imperialistas (decadentes, porém poderosos) decididos a saquear os recursos naturais da periferia.
A eliminação ou subordinação democrática desse núcleo duro equivaleria em termos concretos à quebra da espinha dorsal do capitalismo colombiano. Custa acreditar que os donos do sistema se resignem a perdê-lo enquanto o Império exacerba sua guerra planetária.
Os crápulas transparentes
Os Estados Unidos expandem sua presença militar pela América Latina secundado por seus aliados da OTAN.
Vejamos algumas notícias recentes. No Paraguai, acaba de desembarcar um contingente de especialistas em inteligência militar, segundo o informado pelo governo desse país, que se somam a um número desconhecido de “assessores” norte-americanos formais e de mercenários de origem diversa (1). Em Honduras (na base de Palmerola), os Estados Unidos decidiram pela instalação da denominada “Força Tarefa de Propósito Especial Ar-Terra de Marines-Sul” que, dotada da mais alta tecnologia, estará em condições de operar rapidamente em qualquer zona da região considerada “em situação de crise” (2). Durante 2015, 3.200 marines norte-americanos estão chegando ao Peru prolongando as tarefas de apoio que já vinham realizando destinadas, segundo a informação oficial… “a combater as ameaças insurgentes” (3).
Com relação à dupla Colômbia-Venezuela, as notícias não podem ser mais claras. Em começos deste ano foi anunciada a instalação no departamento de La Guajira, fronteira com a Venezuela (próximo de Maracaibo), de uma unidade blindada capaz de deslocar-se rapidamente, chamada “Força Tarefa de Armas Combinadas Médias” (FUTAM). A nova unidade militar disporá de blindados de última geração, segundo a publicação especializada “defesa.com”. No ato oficial de entrega dos mesmos, o ministro de defesa da Colômbia, Juan Carlos Pinzón, “referindo-se a um cenário futuro de pós-conflito ante a possibilidade de chegar a paz com a guerrilha das FARC, ressaltou que as Forças Armadas da Colômbia ‘estão hoje com capacidade de interoperar com outras do mundo, especialmente com as de outros países com status internacionais e com missões que busquem garantir a paz global’…”. Os “outros países” são, em primeiro lugar, os Estados Unidos e seus sócios da OTAN & Cia que “garantem a paz” (?) com suas guerras na Líbia, Iraque, Afeganistão, Iémen, Síria, Palestina, Ucrânia…
Isto coincide com o ocorrido na “mesa de especialistas” convocada pelo ministro Pinzón sobre o tema do futuro das forças armadas colombianas, onde Mary Beth Long, ex-subsecretária de Defesa dos Estados Unidos, assinalou que “os militares (colombianos) estão estudando outras ameaças na região que podem representar seus vizinhos, como Venezuela, e preparam-se para essas eventualidades. Eu os felicito por isso porque existem outros desafios no horizonte e sua força pública, sua liderança e sua polícia já estão se preparando para isso” (4).
Porém, o departamento de La Guajira não é apenas o lugar de uma base operativa destinada a agredir a Venezuela. Há poucos dias a agência de notícias ADITAL informava que “Desde que o principal rio da região foi represado e sua água privatizada pela indústria agrícola e pela maior exploradora de mina de carbono a céu aberto do mundo, a maior comunidade indígena da Colômbia, composta pelos povos Wayúu, morre de fome e sede. Situada no extremo norte do país, na península desértica de La Guajira, a população sofre por desnutrição, contabilizando pelo menos 37 mil crianças desnutridas. Dados apontam que cerca de 14 mil meninas e meninos já morreram de inanição”.
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(1), “Expertos británicos proveen asistencia de inteligencia en Paraguay”, HISPANTV, 19 de marzo de 2015,http://hispantv.com/newsdetail/Sudamerica/24647/Expertos-britanicos-proveen-asistencia-de-inteligencia-en-Paraguay
(2), “EEUU creará fuerza especial para América Latina con sede en Honduras”, ANNCOL, 3 de Abril de 2015,http://anncol.eu/index.php/mundo/politica-economia/item/122-eeuu-creara-fuerza-especial-para-america-latina-con-sede-en-honduras
(3), “Arribó al Perú el segundo contingente de soldados de EEUU”, defensa.com, 19 de febrero de 2015, http://www.defensa.com/index.php?option=com_content&view=article&id=14742:arribo-al-peru-el-segundo-contingente-de-soldados-de-eeuu&catid=55:latinoamerica&Itemid=163
(4), “Ex subsecretaria de Defensa dice que Colombia se prepara para eventuales conflictos con Venezuela”, noticias-uno, 28 de marzo de 2015, http://noticiasunolaredindependiente.com/2015/03/28/noticias/exsubsecretaria-de-defensa-dice-que-colombia-se-prepara-para-eventuales-conflictos-con-venezuela/
(5), Marcela Belchior, “Privatización de río provoca 14 mil muertes de indígenas por inanición”, ADITAL, 5 de Abril de 2015, http://site.adital.com.br/site/noticia.php?lang=ES&cod=84561
Actualmente, os Estados Unidos implantam uma guerra global cujo fracasso significaria o fim do Império. A lógica da reprodução do parasitismo norte-americano leva a superpotência a uma multiplicação de ofensivas à escala planetária, destinadas a quebrar os obstáculos que freiam seu projecto de superexploração devastadora dos recursos naturais e humanos do conjunto da periferia. Os dirigentes do Império consideram que essa pilhagem desaceleraria a decadência em curso, impediria o colapso do dólar, baixaria drasticamente os custos de mercadorias e salários coloniais engordando os benefícios de suas empresas, sustentando seus mercados internos cada vez mais concentrados.
A América Latina e o Caribe constituem um espaço decisivo do dito projecto. Sua recolonização integral é a peça chave de uma ofensiva planetária cuja implantação na região abarca uma ampla gama de operações convergentes. Trata-se de uma mega estratégia flexível que inclui as desestabilizações de média intensidade no Brasil e Argentina, a intervenção directa encoberta na Colômbia, os golpes de estado em Honduras ou Paraguai, a tentativa de desestabilização de alta intensidade apontando para a intervenção militar na Venezuela, o ensaio de “abraço-de-urso” buscando desarticular Cuba, a instalação de bases militares avançadas no Peru, etc. O objectivo final é a transformação do quintal latino-americano em uma região caótica, sem barreiras estatais nem rebeldias significativas a sua dominação.
A exacerbação das intervenções imperialistas coincide com (busca aproveitar o) declínio dos governos progressistas cujas dificuldades abrem brechas que facilitam essas investidas. O aprofundamento da crise global impacta sobre a América Latina. As altas taxas de crescimento económico ficaram no passado, as contradições sociais se aprofundam e colocam em xeque os equilíbrios progressistas que demonstram sua fragilidade. Um bom exemplo disso é o Brasil, onde o governo direitiza sua política sem conseguir acalmar o apetite das elites e das classes médias reaccionárias cada vez mais reaccionárias que buscam o revanchismo, apontando para a hiperconcentração de renda e submissão integral dos pobres.
É dentro desse contexto global-regional que devem ser situadas as operações imperiais em curso sobre a Colômbia e a Venezuela.
O machado de guerra
A Venezuela aparece como o objectivo central do capítulo da guerra energética global dos Estados Unidos. A república bolivariana conta com 20% das reservas mundiais de petróleo convencional, o primeiro global. A confrontação deste fato com a informação sobre as reservas limitadas e declinantes em médio prazo do petróleo convencional e de xisto nos Estados Unidos bastaria para medir a urgência do Império em devorar esse bocado. A propaganda acerca das supostas imensas reservas norte-americanas de petróleo de xisto terminou por se chocar com a dura realidade: recentemente a Agência de Energia dos Estados Unidos deu a conhecer que antes do fim da década actual a produção norte-americana de petróleo de xisto chegará a seu nível máximo depois do qual começará a decair. Na realidade, a crise desse sector já começou impulsionada pela baixa do preço que reduziu sensivelmente seus benefícios (fazendo-os negativos em um número crescente de casos).
Porém, não se trata apenas de petróleo, em que pese a demonização mediática internacional do processo venezuelano. O mesmo continua operando como um incentivo importante para os movimentos populares da região, para os comportamentos estatais independentes a respeito da dominação estadunidense. Apesar do falecimento de Chávez, a Venezuela segue sendo uma peça decisiva de articulações rebeldes ante o poder imperial, como ALBA e outras iniciativas regionais, e para outros espaços da periferia.
A “Ordem Executiva” de Obama contra a Venezuela declarando-a uma “ameaça extraordinária” à segurança nacional dos Estados Unidos não é um exercício retórico, mas um passo decisivo de uma ofensiva que busca intimidar o governo e as forças armadas venezuelanas, alentar a oposição, mobilizando seus grupos conspirativos mais radicais. Com essa decisão, Washington dá um salto qualitativo na deslegitimação do estado venezuelano ante o Ocidente, abrindo dessa maneira um capítulo de intervenções directas e clandestinas, de reconhecimento legal ou, de fato, de “representantes da oposição”, de apoio a possíveis levantes armados, a uma agressão do exército colombiano, etc., ou seja, a cenários conhecidos em outros lugares da periferia como a Síria ou a Líbia. Essa é a linha de ação principal.
Não faltam funcionários de governos progressistas latino-americanos e, inclusive, do próprio governo venezuelano que estão propensos a ver o lado moderado da tormenta, supondo que a declaração imperial tende bem mais a pressionar a Venezuela que empurrá-la astutamente para a direita, buscando a instalação de um “governo de unidade nacional” (mistura pragmática de chavistas razoáveis e opositores conciliadores), de amigo ou menos inimigo dos Estados Unidos. Na realidade, essa ilusão também constitui a estratégia estadunidense golpeando por um lado e oferecendo, ao mesmo tempo, uma saída pacífica tentando assim abrandar o campo inimigo, criar fissuras e deserções. O jogo constitui parte do manual para principiantes em guerras coloniais.
Washington sabe muito bem que, a longo prazo, não existe alternativa suave para a Venezuela, qualquer direitização brutal ou gradual geraria uma concentração de renda acompanhada inevitavelmente por revanches sociais das classes subalternas que, automaticamente, faria eclodir rebeliões populares. O processo bolivariano não trouxe a transição socialista prometida, não quebrou a espinha dorsal do capitalismo (partida essencial do caminho pós-capitalista), se atolou em uma confusa e interminável “transição” para a transição anunciada. Porém, o fez oferecendo numerosas conquistas sociais, mobilizando os de baixo, enchendo suas cabeças de esperanças, forjando identidade popular, auto-estima dos humildes. Isso não se pode apagar facilmente.
Assim como existe na Venezuela um fascismo maciço nas classes médias e altas, que apenas se forma com uma contra-revolução sangrenta, também existe um chavismo profundo nas classes baixas que aprenderam a odiar o capitalismo, os Estados Unidos, e que sabe lutar. O chavismo não esmagou o país burguês impondo o país popular e socialista. O resultado de sua condução desordenada foi a criação de dois países incompatíveis entre si.
Para Washington trata-se de conquistar a Venezuela, nem mais nem menos, não para instaurar uma nova ordem colonial, mas para parasitar livremente sobre o caos, para saquear riquezas navegando em meio da desarticulação violenta de uma sociedade estrategicamente submetida. Para visualizar o futuro venezuelano desejado por Washington não basta ler os velhos textos sobre a ascensão do fascismo na Itália ou dos neofascismos militares mais recentes na América Latina. É preciso olhar firmemente para o Iraque ou a Líbia.
O anzol da paz
Uma peça chave na conquista da Venezuela é o exército colombiano, a força armada regular com maior experiência de combate da região, 460 mil pessoas (incluindo as três armas mais a polícia nacional). De longe é o maior aliado militar dos Estados Unidos na América Latina, útil tanto para a realização de incursões rápidas como para uma invasão em grande escala e como aparato de apoio a uma guerra prolongada na Venezuela. É necessário acrescentar a estas forças profissionais várias dezenas de milhares de paramilitares imediatamente operativos ou de fácil recrutamento.
Porém, essa força agressiva potencial está imóvel no território colombiano por uma insurgência que não pode ser dobrada após meio século de repressão e que no caso de guerra civil ou de invasão à Venezuela poderia converter-se no núcleo principal de uma estendida guerra popular abarcando ambos os países ou pelo menos em um aliado estratégico decisivo dos combatentes venezuelanos. Para os estrategistas do Império, tirar da cena regional essa insurgência é um objectivo prioritário. Como não puderam fazê-lo pela via militar tentam agora conseguir através de um complexo operativo envolvente de pressões directas e indirectas e de ofertas tentadoras combinadas com a ameaça (e a prática) permanente do porrete bélico. Tentando converter a crescente debilidade (e decrescente legitimidade) do regime colombiano em uma sorte de armadilha letal colocada aos pés da insurgência, “permitindo” sua extensão (tendendo para o excesso de extensão) política mais ou menos legal com a finalidade de criar ataduras sistémicas de todo tipo (institucionais, políticas, ideológicas, sociais, etc.) que a impeçam sair da rota do apaziguamento. À trama local soma-se um não menos confuso jogo de pressões regionais e extra-regionais mais ou menos “amistosas” completando o cerco psicológico. Apaziguar, deslocar, dormir, penetrar esse factor perturbador extremamente perigoso é a obsessão desses manipuladores de alto voo. A estratégia tem algo de ciência e algo de póquer porque se baseia principalmente na capacidade (difícil de medir) de absorção (de degradação politiqueira) do regime colombiano, cuja evolução se articula cada vez mais em torno de duas dinâmicas inter-relacionadas que podem ser maquiadas, adornadas com garantias democráticas ilusórias, porém não eliminadas já que constituem o núcleo duro, sobredeterminante da reprodução do sistema, de sua inserção no capitalismo global.
Em primeiro lugar, o aparato militar cujo sobredimensionamento com relação à sociedade colombiana corresponde à longa guerra interna da qual foi protagonista, mas também à vinculação-dependência do aparato militar norte-americano e suas estratégias coloniais. Atravessado por negócios mafiosos próprios e laços directos com o império, dispõe de significativas margens de autonomia das camarilhas burguesas locais, com as quais compartilha interesses. Não é segredo para ninguém que os Estados Unidos contam com as forças armadas da Colômbia para suas futuras operações militares regionais e extra-regionais. Somente um progressista iludido pode acreditar que o Império e seus lacaios locais podem aceitar pacificamente a democratização e redução significativa dessa estrutura criminosa.
Em segundo lugar, a crescente hegemonia económica na Colômbia do complexo agrário-minerador exportador (agricultura quase sem camponeses e mineração ultraextrativista), que expulsa a população e destrói o meio ambiente, o modelo se impõe à lógica global do capitalismo, de seus polos imperialistas (decadentes, porém poderosos) decididos a saquear os recursos naturais da periferia.
A eliminação ou subordinação democrática desse núcleo duro equivaleria em termos concretos à quebra da espinha dorsal do capitalismo colombiano. Custa acreditar que os donos do sistema se resignem a perdê-lo enquanto o Império exacerba sua guerra planetária.
Os crápulas transparentes
Os Estados Unidos expandem sua presença militar pela América Latina secundado por seus aliados da OTAN.
Vejamos algumas notícias recentes. No Paraguai, acaba de desembarcar um contingente de especialistas em inteligência militar, segundo o informado pelo governo desse país, que se somam a um número desconhecido de “assessores” norte-americanos formais e de mercenários de origem diversa (1). Em Honduras (na base de Palmerola), os Estados Unidos decidiram pela instalação da denominada “Força Tarefa de Propósito Especial Ar-Terra de Marines-Sul” que, dotada da mais alta tecnologia, estará em condições de operar rapidamente em qualquer zona da região considerada “em situação de crise” (2). Durante 2015, 3.200 marines norte-americanos estão chegando ao Peru prolongando as tarefas de apoio que já vinham realizando destinadas, segundo a informação oficial… “a combater as ameaças insurgentes” (3).
Com relação à dupla Colômbia-Venezuela, as notícias não podem ser mais claras. Em começos deste ano foi anunciada a instalação no departamento de La Guajira, fronteira com a Venezuela (próximo de Maracaibo), de uma unidade blindada capaz de deslocar-se rapidamente, chamada “Força Tarefa de Armas Combinadas Médias” (FUTAM). A nova unidade militar disporá de blindados de última geração, segundo a publicação especializada “defesa.com”. No ato oficial de entrega dos mesmos, o ministro de defesa da Colômbia, Juan Carlos Pinzón, “referindo-se a um cenário futuro de pós-conflito ante a possibilidade de chegar a paz com a guerrilha das FARC, ressaltou que as Forças Armadas da Colômbia ‘estão hoje com capacidade de interoperar com outras do mundo, especialmente com as de outros países com status internacionais e com missões que busquem garantir a paz global’…”. Os “outros países” são, em primeiro lugar, os Estados Unidos e seus sócios da OTAN & Cia que “garantem a paz” (?) com suas guerras na Líbia, Iraque, Afeganistão, Iémen, Síria, Palestina, Ucrânia…
Isto coincide com o ocorrido na “mesa de especialistas” convocada pelo ministro Pinzón sobre o tema do futuro das forças armadas colombianas, onde Mary Beth Long, ex-subsecretária de Defesa dos Estados Unidos, assinalou que “os militares (colombianos) estão estudando outras ameaças na região que podem representar seus vizinhos, como Venezuela, e preparam-se para essas eventualidades. Eu os felicito por isso porque existem outros desafios no horizonte e sua força pública, sua liderança e sua polícia já estão se preparando para isso” (4).
Porém, o departamento de La Guajira não é apenas o lugar de uma base operativa destinada a agredir a Venezuela. Há poucos dias a agência de notícias ADITAL informava que “Desde que o principal rio da região foi represado e sua água privatizada pela indústria agrícola e pela maior exploradora de mina de carbono a céu aberto do mundo, a maior comunidade indígena da Colômbia, composta pelos povos Wayúu, morre de fome e sede. Situada no extremo norte do país, na península desértica de La Guajira, a população sofre por desnutrição, contabilizando pelo menos 37 mil crianças desnutridas. Dados apontam que cerca de 14 mil meninas e meninos já morreram de inanição”.
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(1), “Expertos británicos proveen asistencia de inteligencia en Paraguay”, HISPANTV, 19 de marzo de 2015,http://hispantv.com/newsdetail/Sudamerica/24647/Expertos-britanicos-proveen-asistencia-de-inteligencia-en-Paraguay
(2), “EEUU creará fuerza especial para América Latina con sede en Honduras”, ANNCOL, 3 de Abril de 2015,http://anncol.eu/index.php/mundo/politica-economia/item/122-eeuu-creara-fuerza-especial-para-america-latina-con-sede-en-honduras
(3), “Arribó al Perú el segundo contingente de soldados de EEUU”, defensa.com, 19 de febrero de 2015, http://www.defensa.com/index.php?option=com_content&view=article&id=14742:arribo-al-peru-el-segundo-contingente-de-soldados-de-eeuu&catid=55:latinoamerica&Itemid=163
(4), “Ex subsecretaria de Defensa dice que Colombia se prepara para eventuales conflictos con Venezuela”, noticias-uno, 28 de marzo de 2015, http://noticiasunolaredindependiente.com/2015/03/28/noticias/exsubsecretaria-de-defensa-dice-que-colombia-se-prepara-para-eventuales-conflictos-con-venezuela/
(5), Marcela Belchior, “Privatización de río provoca 14 mil muertes de indígenas por inanición”, ADITAL, 5 de Abril de 2015, http://site.adital.com.br/site/noticia.php?lang=ES&cod=84561
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