FRANÇA, ESTADO POLICIAL
Depois da aprovação da nova lei de espionagem interna (e externa) no passado dia 5, a França governada pelos socialistas não necessita de fascistas para nada, pode expedir a senhora Le Pen, família e respectiva corte para a Ucrânia, por exemplo. Desde esse dia, e a não ser que o Conselho Constitucional trace um X gigantesco e a vermelho sobre esta “lei celerada”, como é conhecida nos meios democráticos, cada cidadão francês, ou mesmo cada estrangeiro que pise solo gaulês ou se atreva a navegar pela internet, é um potencial terrorista e, no caso provável de ser capturado por uma qualquer das muitas sondas comportamentais que os serviços de espionagem aplicam por atacado, terá enorme trabalheira para justificar que não o é.
Através da nova lei das informações, aprovada no Parlamento por 438 votos contra 86 (um número de opositores que, pela sua insignificância, já foi comparado à capitulação em 1940 através da entrega de plenos poderes ao general Pétain), os serviços de espionagem franceses vão dispor dos resultados de uma vigilância organizada e em massa com recurso aos meios convencionais e aos mais avançados equipamentos tecnológicos. Uma ofensiva global contra os direitos humanos, porque aplicada à margem das instituições de controlo judiciário e democrático, na maioria dos casos relegadas para papéis a posteriori em função de alegados procedimentos “de urgência”, digamos, de oportunidade.
Tal como os Estados Unidos da América deram asas à vigilância universal através da NSA, desenvolvida à luz da “Lei Patriótica” nascida com o 11 de Setembro de 2001, os socialistas franceses tiraram da cartola a sua “lei patriótica” e o estilo NSA dois meses depois do ainda muito mal explicado (em termos de falhanços dos serviços secretos, por exemplo) atentado contra o Charlie Hebdo.
A nova lei visa combater o terrorismo; por isso, tudo o que se diz sobre vigilância em massa é abusivo, explicam genericamente os autores e defensores da lei. “Descobrimos que umas coisas, umas máquinas chamadas algoritmos, podem ir ver se há ou não terroristas que utilizam as nossas comunicações criptografadas, e como não havia lei para enquadrar essa actividade” ela aí está, explicou François Hollande, o Presidente da República, dirigindo-se aos concidadãos como se fossem imbecis.
Qual é o “interesse público” definido pela nova lei como suporte para a acção dos espiões? Segurança nacional; salvaguarda dos elementos essenciais do potencial científico e económico de França; prevenção do terrorismo, criminalidade e delinquência organizados; reconstituição ou manutenção de grupos dissolvidos; prevenção da violência colectiva; defesa e prevenção dos interesses da política externa francesa. Imaginar um comportamento que não seja passível de caber neste menu, sobretudo conhecendo-se o enviesamento em que os espiões são peritos quando agem sem controlo, é pior que descobrir agulha em palheiro.
O esqueleto do projecto de lei é da autoria de um deputado socialista, Jean-Jacques Urvois, que não esconde a sua repulsa pelo norte-americano Edward Snowden, “um idiota útil ao serviço de grupos terroristas”. Além do primeiro-ministro Manuel Valls, outro dos grandes defensores da lei no Parlamento foi o ministro do Interior, Bernard Cazeneuve. Em sua opinião, a lei é perfeita, não tem os defeitos que lhe apontam e não atenta contra a privacidade dos cidadãos. “A vida privada é outro assunto, não se trata de uma liberdade individual”, assegura este ministro, que continua no cargo apesar de se terem provado as suas mentiras a propósito do assassínio pela polícia de um manifestante contra a devastação de uma floresta.
Marc Trevic, um renomado juiz antiterrorista, desmonta os argumentos governamentais. “Não é uma lei antiterrorista”, garante. “Abre caminho à generalização de métodos intrusivos fora do controlo dos juízes judiciários, os garantes das liberdades individuais no nosso país”.
Que métodos intrusivos? De tudo um pouco. Escutas telefónicas comuns segundo procedimentos “de urgência” que escapam ao controlo das entidades judiciárias; distribuição pelos espiões de gadgets muito na moda nos Estados Unidos, como as “dirtboxes” ou “Imsi-catchers”, malas de dimensões insuspeitas que captam as comunicações móveis num raio de muitos metros em redor através da detecção dos dados dos cartões SIM e dos próprios telefones; perseguição através dos dados GPS de cidadãos que sejam detectados por quaisquer das sondas de vigilância instaladas em escala industrial pelos vários serviços de espionagem; vigilância generalizada da internet através da recolha de dados pessoais e das conexões entre internautas junto dos operadores dos serviços; instalação de tecnologia de vigilância nas empresas fornecedoras de acesso à internet e nas empresas de telecomunicações, imposição que tem suscitado protestos destas contra o facto de serem obrigadas a aceitar equipamentos que lhes são estranhos.
O sistema proporciona, portanto, uma recolha aleatória e em massa de dados pessoais e de instituições, que confluem para uma imensa “caixa negra” de que os serviços de espionagem se servem a seu belo prazer. Assim nasce o Estado policial francês, asfixiando o Estado de Direito.
O passo é de tal maneira grave que esta lei seria “inimaginável” na Alemanha, opinião compartilhada entre sectores da oposição e meios afectos à própria chanceler Merkel. “Inimaginável” na Alemanha; e em outros países europeus, sempre tão inclinados a fazer gato-sapato da vida privada do cidadão? Provavelmente poderão ser “imagináveis”, quando o mau exemplo está dado, é tentador e parte de uma das “locomotivas” da União Europeia, aliás bastante ronceira - o que não vem ao caso.
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