quarta-feira, 15 de abril de 2015

REPASSANDO...

   
 

O Império vulnerável


15.Abr.15
Nenhum império aceitou de bom grado o seu desaparecimento, e os Estados Unidos estão a travar uma guerra para tentar manter a sua hegemonia no mundo: guerra aberta no Médio Oriente, por atores interpostos na Europa de Este, subterrânea na Ásia e nas instituições internacionais, empresariais, comerciais e ambientes diplomáticos.


Para Washington, os dias felizes da última década do século XX, quando o poder norte-americano era inegável e desmedido em todo o planeta, não voltarão. O erro estratégico de Bush, a invasão do Iraque, lançada pelo neoconservadorismo estadunidense para iluminar o século XXI sob o seu domínio, paradoxalmente, deu lugar às primeiras fissuras francesas e alemãs e a extenuantes guerras no Médio Oriente, a que se acrescentaram a nova política de Putin que apagou assim os anos de Yeltsin com uma Rússia ajoelhada, e o cauteloso e progressivo fortalecimento chinês. A conjunção de umas guerras pantanosas e sujas com a revelação ao mundo que Washington espia, sequestra, tortura, prende e mata sem controlo; de uma economia capitalista de casino onde os velhos bandidos continuam a roubar às mãos cheias, e da progressiva certeza que os Estados Unidos se bem que possam iniciar guerras e incendiar regiões inteiras não podem já impor a sua vontade, fizeram o resto.
A passagem dos dias felizes ao novo mundo revelou que o império norte-americano, sempre dominante e orgulhoso, se tinha tornado vulnerável.
A confusão perante o mundo que bate à porta, sem cerimónia mas irremediavelmente, e a certeza de que os anos de glória se esvaem, difundida pelos inimigos e também por personagens como Bill Clinton ou Henry Kissinger, não mitiga nos núcleos dirigentes de Washington o afã de tentar deter a decadência, nem evita a perigosa convicção, arreigada no pensamento estratégico norte-americano, que os Estados Unidos são uma «nação providencial», criada para confirmar o sonho divino, segura da sua bendição (In God we trust), nascida para dirigir o mundo. Todo o establishment norte-americano está convencido da «excepcionalidade» dos Estados Unidos da América. Essa ideia companheira da aventura imperial tem as suas longínquas origens na política externa de William Henry Seward (secretário de Estado de Abraham Lincoln e de Andrew Johnson) e, mais tarde, na presidência de Teddy Roosevelt. Depois da Segunda Guerra Mundial, nos anos de Truman, os Estados Unidos iniciaram os seus programas de operações militares encobertas para apoiar grupos guerrilheiros em território soviético e chinês ou na Europa, como fizeram na Albânia, e operações que continuaram com praticamente todos os presidentes que, além de protagonizarem guerras de extermínio como no Vietnam, autorizaram planos para derrubar governos, da Guatemala ao Irão, passando por Cuba, Chile, a velha Indochina, Congo, Angola, Afeganistão, Nicarágua e, nos últimos vinte anos lançaram novas operações (diretamente ou através de grupos terroristas dirigidos pela CIA) na periferia russa, na Ásia Central, Iraque, Irão, Paquistão, Iémen, Síria e Líbia.
Hoje, a pretensão de manter um mundo unipolar, o predomínio norte-americano no planeta tem dois sérios adversários: Pequim e Moscou.
A China não procura substituir os Estados Unidos como grande potência, apesar de ter os recursos necessários para o fazer, mas rejeita o hegemonismo belicista e brutal que define a Casa Branca; a Rússia, cujo poder económico é notoriamente menor que o dos Estados Unidos e da China, quer a consolidação de um mundo multipolar, ao mesmo tempo que procura pacientemente reconstruir os velhos laços com as antigas repúblicas soviéticas, pois sabe que nada de bom pode esperar de um mundo dirigido por Washington.
Por isso, no desenho da política externa norte-americana, Pequim e Moscou são alvos a abater, e Washington não hesitaria um segundo a dar uma hipotética contribuição à partilha da Rússia e da China, tal como impulsionou o desmembramento da União Soviética. Não é apenas uma questão ideológica, pois se a China mantém um perfil comunista (apesar das mudanças havidas e da opção para o desenvolvimento económico) que justifica a desconfiança de Washington, a nova Rússia capitalista não pode ser considerada um adversário pelo seu modelo social.
Mas os dois países são sombras ameaçadoras pela sua envergadura para o declinante sol norte-americano. Se a China defende um concerto internacional onde os grandes países sejam co-responsáveis no planeta e a Rússia prossegue a sua laboriosa reconstrução e aspira consolidar a sua posição de grande potência, os Estados Unidos só perseguem a dominação cega, a hegemonia sobre um mundo angustiado que assiste ao agravamento de todos os perigos, à ameaça do apocalipse ecológico e de um capitalismo escravagista que cobre de miséria, imundice, pó e exploração boa parte dos habitantes do planeta. As mais relevantes decisões estratégicas de Washington vão nos últimos anos nessa direção e têm Pequim e Moscou entre os seus objetivos: o desenvolvimento dos escudos antimísseis na Europa e na Ásia, as tentativas de sabotagem do projeto de Putin da «União Euro-Ásia», a exclusão da Rússia do G-8, bem como o «regresso à Ásia» para conter a pujança chinesa, como o apoio a golpes de Estado (nos últimos dois anos na Tailândia, Egito e Ucrânia) e a ajuda militar e diplomática a rebeliões contra governos incómodos (Líbia, Síria, etc.); tudo isto sem esquecer o patrocínio de uma guerra civil ucraniana na fronteira sul da Rússia, o projeto de incorporação da Ucrânia e da Geórgia na OTAN, e a utilização de redes terroristas para os seus objetivos. Essas decisões, que à luz da obrigatória cooperação internacional para enfrentar a crise mundial não eram nem necessárias nem inevitáveis, revelam a ambição norte-americana. E também a sua cegueira.
Agora mesmo, as três zonas mais perigosas do planeta são o Médio Oriente, a Europa Oriental e as costas que banham a China (Mar da China Oriental e Mar da China Meridional). Nas três se confrontam os interesses de Washington, Pequim, e Moscou. Com exceção das costas chinesas as guerras foram impostas, com diferentes intensidades, e aqui, na Ásia, a nova orientação belicista do governo de Shinzo Abe não permite optimismos nem poderia ocorrer sem o aval prévio do governo norte-americano. A renúncia ao pacifismo consagrado pela velha Constituição nipónica (princípio pacificador imposto pelos Estados Unidos no pós-guerra) ilustra bem a nova tentação de Washington, e anuncia uma viragem estratégica na política do Japão que responde mais aos anseios dos Estados Unidos que aos seus próprios, visto que a China, para além da defesa dos seus interesses e da reivindicação de algumas ilhotas da sua frente marítima, não mostrou o menor sinal de agressividade para com o Japão nem mobilizou o seu exército, ainda que tenha manifestado a sua preferência pelos partidos políticos japoneses e os sectores empresariais que se opõem a Abe. As últimas iniciativas chinesas no seio dos BRICS, como a criação do Asian Infrastructure Investment Bank, (AIIB na sua sigla inglesa) que terá a sua sede em Pequim e pode tornar-se uma alternativa ao Banco Mundial e ao FMI, foram sabotadas por Washington, que forçou o Japão, a Coreia do Sul e a Indonésia a não se juntarem ao projeto. A visita de Xi Jinping a Seul (onde os sucessivos governos e os partidos mantêm uma grande desconfiança histórica em relação ao Japão) foi interpretada por Washington como uma tentativa chinesa de debilitar o tridente que agrupa os Estados Unidos, o Japão e a Coreia do Sul, e constitui o eixo central das alianças norte-americanas na região Ásia-Pacífico.
No Médio Oriente, os Estados Unidos continuam a apoiar-se na Arábia Saudita e no Egito, confrontam-se com o poder regional do Irão e transigem com uma Turquia que, se bem que aliada formal da OTAN tem os seus próprios interesses e exerce um papel cada vez mais autónomo na região. O desastre estratégico das guerras lançadas por George W Bush criou um caos regional (Iraque, Afeganistão, Paquistão, Síria), que se estendeu ao Iémen, enquanto o governo de Obama, que foi incapaz de introduzir na discussão sobre o futuro da região a sangrenta ferida palestina, tem ainda de lidar com a agressividade de Israel. Quase três lustros depois da intervenção militar estadunidense no Médio Oriente foram destruídas sociedades onde imperava o laicismo e se tinha iniciado o desenvolvimento, e foi criado uma realidade de guerras de controlo, de morte e destruição, de desenvolvimento do fanatismo religioso e explosão do terrorismo.
Para a Ucrânia, Washington seguiu um minucioso guião para o qual arrastou a União Europeia: primeiro organizaram a ajuda a Maidan e a provocação dos franco-atiradores de Kiev; depois incentivaram o golpe de estado contra Yanukovitch; por último, lançaram a operação de castigo contra os opositores do golpe de estado, que degenerou numa guerra civil no Este deste país, com episódios de provocação como o suspeito derrube do avião da Malásia Airlines, MH17, que Washington já não tem interesse em esclarecer. Os Estados Unidos suspiram pela dependente política externa de Moscou dos anos de Yeltsin e Kozirev e, perante a nova orientação estratégica de Putin (que resiste à intromissão norte-americana mas quer manter boas relações com Bruxelas), conseguiram impor à União Europeia a sua política de acosso a Moscou. Washington e Bruxelas impuseram até agora sete vagas de sanções contra a Rússia com especial ênfase nos interesses desta no negócio do petróleo e do gás, na indústria de armamento e nas instituições financeiras russas. As apressadas exigências norte-americanas chegam ao ponto de, torpemente, apresentarem novas sanções: assim, a ruptura da trégua por Kiev foi seguida da adopção de novas represálias a Moscou, «por causa da escalada de violência na Ucrânia», ainda que tivesse a pedra grega no sapato. Se até Janeiro de 2015 a União Europeia estudava um relaxamento das sanções à Rússia, a ofensiva de Poroshenko (com o total aval de norte-americano) mudou por completo a situação. Washington quere prejudicar as trocas comerciais entre a União Europeia e a Rússia, dificultar a expansão «da nova rota da seda» entre a China e a Europa e, na medida do possível, torpedear a relação entre Moscou e Pequim.
A ruptura da «trégua de Minsk» e o reinício da guerra civil ucraniana por parte de Poroshenko não seria possível sem o acordo de Obama e abre duas hipóteses que agradam a Washington: a primeira indica que se Poroshenko conseguisse aplacar a resistência no Leste do país abrir-se-ia o caminho à incorporação da Ucrânia na NATO, e ter-se-ia dado um duro golpe no desenvolvimento da «União Euro-Ásia», o projeto estratégico de Putin; a segunda é mais inquietante: que Moscou reaja e intervenha na guerra civil ucraniana, o que abriria a perigosa possibilidade de uma guerra generalizada na Europa. Não é uma hipótese disparatada: os Estados Unidos já incendiaram todo o Médio Oriente, e uma guerra global é uma das vias para a saída da crise geral do capitalismo mundial. A Ucrânia, parceiro menor neste grande jogo, ameaça com o apoio norte-americano e chantageia: exige à Rússia preços do gás mais baratos que os do mercado mundial, nega-se a pagar dívidas pendentes, e ameaça com o desvio de parte do gás que corre pelos gasodutos ucranianos com destino à União Europeia. Perante as posições de Putin que pede atenção e respeito pelos interesses de cada parte, o governo de Obama responde com uma retórica agressiva e uma campanha de propaganda visando o isolamento internacional da Rússia e a sua estigmatização como «país agressor» na crise ucraniana, como se os EUA não tivessem apoiado o golpe de estado na Ucrânia nem fosse uma evidência flagrante as últimas guerras de agressão lançadas pelos Estados Unidos. A pressão sobre a França para que suspenda a entrega dos porta-helicópteros Mistral a Moscou é uma prova mais da atitude de Washington e da tentativa de isolar a Rússia, acompanhadas da criação de novos centros militares da OTAN no Báltico e na Polónia, de novas missões de vigilância na Estónia, Letónia e Lituânia, e do reforço da presença da marinha de guerra norte-americana em águas próximas do Mar Negro e no Golfo da Finlândia. Complementarmente, o secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, afirmou que a aliança deve preparar-se para «utilizar a força» se for necessário.
A União Europeia desempenha o papel de simples comparsa, afundando-se numa grave crise e ameaçada por uma política que não só não consegue superar a recessão económica como ainda agrava a sua falta de autonomia e decadência como ator político global, além de que uma hipotética quebra da zona euro danificaria irremediavelmente a Alemanha, que entretanto se converteu no eixo da Europa. A Grã-Bretanha continua a ser o fiel escudeiro de Washington. Os governos britânicos, conservadores ou trabalhistas, consideram que manter o estatuto de potência internacional só pode ter lugar à sombra do amigo americano. A França aspira a continuar a ser parte do eixo central da União Europeia e a preservar o seu papel de potência regional nos países saharianos e no Sahel africano. Por seu lado, a Alemanha está consciente que se a guerra civil ucraniana favorece a presença e o papel estratégico da NATO e dos interesses norte-americanos, a extensão do dispositivo militar da NATO até à fronteira russa é uma provocação desnecessária a Moscou e não augura nada de bom para Berlim e a União Europeia. Isso explica as suas reticências à incorporação da Ucrânia e da Geórgia na aliança militar ocidental, ainda que o partido da guerra também tenha partidários em Berlim e as velhas hipotecas da sua subordinação aos Estados Unidos não se romperem no curto prazo. A instabilidade da zona euro, a que se juntam as nuvens que pairam sobre o futuro da União Europeia, não aconselha de modo algum o envolvimento na aventura ucraniana. E Berlim sabe-o. Mas nenhuma das potências europeias vai resistir às imposições de Washington.
O Mar da China oriental converteu-se numa «zona quente»: a aposta do governo nipónico de rever a Constituição para abrir a porta a intervenções militares no exterior tem claramente um destinatário: a China. No entanto, Pequim ainda que não deixe de marcar as suas próprias linhas vermelhas não está disposto a deixar-se arrastar para um conflito aberto. O próprio Exército Popular afirmava recentemente num jornal a sua deficiente preparação militar, o que dificultaria a vitória numa hipotética guerra no Oriente. No Outono passado, Pequim anunciou o seu novo míssil balístico intercontinental, GF-31B, capaz de atingir o território estadunidense, mas a sua força militar continua claramente menor que a norte-americana. O governo de Pequim está consciente que o Pentágono tem planos concretos para um eventual ataque massivo à China, rápido e contundente, que inclui o «escudo antimísseis», hipocritamente apresentado à opinião pública como um mecanismo de defesa em relação a uma pequena potência como a Coreia do Norte, sem qualquer possibilidade real de alcançar o território norte-americano. Não será por acaso que o general Valeri Gerásimov, chefe do Estado-Maior russo, advertia em Janeiro de 2015 que o escudo antimísseis norte-americano estava a adquirir um carácter global, e que estava a desenvolver-se na região do Pacífico, apesar de a sua instalação violar os tratados de desmantelamento de mísseis de curto e médio alcance subscritos por Washington e Moscou.
Nenhum império aceitou de bom grado o seu desaparecimento, e os Estados Unidos estão a travar uma guerra para tentar manter a sua hegemonia no mundo: guerra aberta no Médio Oriente, por atores interpostos na Europa de Este, subterrânea na Ásia e nas instituições internacionais, empresariais, comerciais e ambientes diplomáticos. Os Estados Unidos vão ter dificuldades financeiras e políticas para manter a sua presença no Médio Oriente, para aumentar o desenvolvimento militar na Europa de Leste sem confrontar os seus aliados europeus, e também para promover o seu «regresso à Ásia», que não podem fazer sem aumentar a despesa militar: no princípio de 2015, a comissão de orçamento do Congresso norte-americano considerava que os Estados Unidos terão de gastar 350.000 milhões de dólares na próxima década, só na manutenção e modernização do seu arsenal nuclear. O aumento dos investimentos militares ameaça a economia norte-americana.
Um dos riscos do futuro imediato é que perante a hipótese de um mundo multipolar, articulado à volta de cinco ou seis países, os Estados Unidos preferem o caos e a guerra à perda da sua hegemonia global. Uma análise realista dos custos que implicaria esse caminho, a resignação à desoladora mas inevitável evidência de já não poderem dominar sozinhos o planeta, deveria levar Washington a aceitar um cenário internacional diferente, a atuar com outras potências num plano de igualdade, mas a convicção da sua providência, enraizada na sua história e nas suas aventuras imperiais podem fazer com que se incline para um mundo caótico, como mostram alguns exemplos inquietantes, pois o código penal que deve aplicar-se aos seus inimigos é sempre a destruição ou a vassalagem. O Pentágono anunciou em Outubro de 2014 a sua nova estratégia (Army operating concept) para uma guerra generalizada, onde não há lugar para qualquer dúvida sobre a disposição de eliminar qualquer possível competidor que possa dificultar o domínio norte-americano sobre o mundo e os seus recursos, recorrendo a um ataque inicial demolidor se o inimigo for uma potência nuclear: China ou Rússia. Os militares norte-americanos tornaram pública a sua preocupação com o «crescente poder militar chinês» e acusaram Moscou de querer manter a sua influência militar na Europa e na Ásia, como se essa aspiração fosse absurda para o país mais extenso da terra, assente naqueles dois continentes. O Pentágono tem uma enorme influência, mas não é a única nos círculos do poder estadunidenses, e se alguns alarmes periódicos têm como função assegurar incrementos orçamentais militares, também indiciam a preocupação que os movem, os inimigos para que apontam e a direção dos disparos. Os Estados Unidos continuam a ser uma formidável máquina de guerra, e contam com um poder determinante, mas tornou-se receoso, imprevisível, sombrio, ao mesmo tempo que continua a devorar as vidas e os dias dos outros, numa frenética corrida para a destruição e o caos, como se pudesse ignorar que se tornaram num império vulnerável.
* Publicista e historiador.
Este texto foi publicado em El Viejo Topo, de Março de 2015.

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